Brumadinho. Negligência, fé e mar de lama

O Brasil tem mais de três acidentes com barragens todos os anos. Sobre três em cada quatro barragens não há dados de segurança suficientes. Empresa desprezou o risco em Brumadinho.

A Vale sabia que em caso de rutura da barragem a zona administrativa e o refeitório seriam inundados pela lama de resíduos. A empresa tentou manter sigiloso o plano de emergência da barragem, datado de 18 de abril do ano passado, negando o acesso aos jornalistas, mas o Folha de S.Paulo conseguiu obter uma cópia que mostra como a Vale conhecia o risco que tinha em mãos e preferiu desprezar esse risco. O plano que projeta os danos em caso de colapso, exigido por lei, calcula que a lama se estenderia até 65 quilómetros da barragem.

Deficiências na manutenção da barragem de resíduos, falhas na construção das infraestruturas da empresa na mina de Córrego do Feijão, erros no plano de emergência em caso de acidente, a Vale conseguiu acumular um jackpot de desastre à espera de acontecer. Sem aprender nada com o desastre da barragem de Mariana, também em Minas Gerais, e que pertencia à empresa através da subsidiária Samarco, a empresa de mineração continuou a jogar com cálculos de risco e probabilidades, pesados em função de investimento e indemnizações: o que custa mais, gastar dinheiro a investir em segurança ou pagar as indemnizações em caso de desastre?

E das 19 mortes de Mariana passaram-se para 110 – que podem ser muitas mais, tendo em conta os 238 desaparecidos e a pouca esperança de os encontrar com vida. As autoridades mandaram prender cinco engenheiros por terem dado o Ok na última inspeção à barragem, mas o presidente Jair Bolsonaro viajou até à zona do acidente acompanhado pelo presidente da Vale, Fabio Schvartsman.

«É de assustar que, após Mariana, não tenham sido feitos estudos exaustivos de rutura de barragens – os dam break – para Brumadinho e as barragens da Vale, cuja técnica de construção é sabidamente precária», escreve José Antunes Sobrinho, especialista em projetos hidráulicos, na Folha.

Brumadinho não é, no entanto,  exceção num país onde há em média três acidentes com barragens a cada ano, de acordo com a Agência Nacional de Águas, o organismo brasileiro encarregado do Relatório de Segurança de Barragens que é divulgado anualmente e entregue ao Congresso. Estes acidentes vão desde acidentes de grandes proporções a casos menores que interromperam o abastecimento ou levaram a inundações.

Desde o primeiro relatório em 2011 até 2017 houve 24 acidentes. Isto, registados, porque a própria agência admite que há incidentes que não são comunicados e barragens cuja construção nem sequer foi comunicada. Em 2017, as autoridades não tinham a informação básica de três quartos das barragens do país.

Iguais às barragens de resíduos de Brumadinho e Mariana há 790 no Brasil. Só a Vale tem 50, 45 delas em Minas Gerais. Das 790, 204 são consideradas de alto potencial de dano para o meio ambiente e os seres humanos, sete delas consideradas de alto risco: quatro em Minas Gerais.

A Agência Nacional de Mineração já anunciou que vai notificar as empresas com resíduos de mineração para que informem em três dias úteis quais foram as providências adotadas quanto à segurança das barragens em função risco e do dano potencial. O prazo começou a contar esta sexta-feira, o que quer dizer que as empresas têm até terça-feira para responder. «Além disso, os empreendedores deverão explicitar alguma ação urgente que tenham adotado ou que venham a adotar, ou mesmo que deva ser adotada pelo poder público, para imediatas providências, seja quanto à prevenção, controle, mitigação e evitação de risco e de dano potencial associado», refere, em comunicado, o Ministério de Energias e Minas do Brasil.

Uma urgência que parece responder mais à pressão da opinião pública e da imprensa do que a vontade de inverter a situação. Passaram-se mais de três anos da rutura de Mariana e é como se nada tivesse mudado até Brumadinho multiplicar a dimensão da tragédia.

O presidente da Vale assumiu a presidência da empresa em maio de 2017 com o lema ‘Mariana nunca mais’ e menos de dois anos depois aí está Brumadinho, que se encaminha para tornar-se o maior desastre do género em todo o mundo nos últimos 30 anos.

Mariana só não foi maior porque uma funcionária da empresa conseguiu ir de moto avisar as pessoas da localidade próxima de Bento Rodrigues do que tinha acontecido. Em Brumadinho, nem as sirenes tocaram porque foram logo engolidas pela lama, tal como o refeitório e o edifício administrativo, onde estavam umas 300 pessoas, tudo construído na zona da inundação, aliás como se pode ver no mapa incluído no plano de emergência, o mesmo que a empresa tentou manter em segredo agora.

Segundo a lei, o plano de emergência devia ter sido entregue à prefeitura e às defesas civis municipais e estaduais da região onde está a barragem. Só que o prefeito de Brumadinho, Avimar de Melo, disse aos jornalistas que não tinha conhecimento da sua existência.

E ainda por cima estava mal feito, porque uma das rotas de fuga que a empresa estabeleceu como segura em caso de acidente foi completamente destruída pela lama. Se houve funcionários ou membros da comunidade a seguir as indicações que lhes foram dadas durante a formação em caso de acidente, é provável que tenham morrido. Embora muito deles garantam que nunca receberam formação da empresa e que se salvaram foi à conta do seu próprio engenho e instinto.

«No caso de Brumadinho, o que me chocou num primeiro momento é a proximidade do centro administrativo e do refeitório, que ficavam a jusante da barragem. A empresa pode dizer que operava dentro de todos os padrões de segurança, mas não se coloca gente tão próxima de uma barragem, porque nenhuma é 100% segura», afirma Cristina Serra, autora do livro Tragédia em Mariana: A história do maior desastre ambiental do Brasil, à BBC News Brasil.

Desde o desastre da barragem de Mariana que os investigadores tentaram influenciar o poder político para que fosse vetada a existência de barragens próximas de comunidades, estabelecendo um perímetro de segurança de 10 quilómetros. Desde 2016, há um projeto de lei na Assembleia Legislativa de Minas Gerais à espera de ser votado pelos deputados, onde se especifica que não pode existir uma barragem que «a jusante seja identificada alguma forma de povoamento ou manancial destinado ao abastecimento público de água potável». A pousada Nova Estância e a povoação de Vila Feterco ficam a dois quilómetros a jusante da barragem de Brumadinho.

A julgar por isto, quando Fabio Schvartsman assumiu a presidência com o lema ‘Mariana nunca mais’, contava mais com a fé e a sorte do que com medidas concretas para que uma nova tragédia fosse evitada. Quando nem sequer a sirene de alerta soou por estar montada em sítio desadequado, poucos argumentos restam ao líder da empresa de mineração.

Estranhamente, mesmo depois de Mariana, o setor continua a ser ‘autofiscalizado’, isto é, são as próprias empresas que contratam os fiscais para fazerem as inspeções anuais à segurança das barragens. Schvartzman usa o argumento de que tem um documento atestando a estabilidade da estrutura datado de setembro de 2018 (as cinco pessoas envolvidas no documento, três funcionários da vale e dois engenheiros da empresa contratada, foram detidos na semana passada).

O setor da mineração é fiscalizado pelo Departamento Nacional e Produção Mineral que, em 2016. entre os seus 985 funcionários, administrativos e fiscais, tinha apenas cinco engenheiros formados em geotécnica.

Daí que a proposta para que fosse o Estado a assumir a fiscalização das barragens, depois do desastre de 2015, não tivesse saído do papel. «O Estado não tem estrutura para que os técnicos se capacitem, sejam estimulados a trabalhar, também não tem técnicos suficientes, então você transfere para o próprio empreendedor a sua própria fiscalização», disse à BBC News Brasil um dos investigadores – «você acha que uma empresa contratada pela própria mineradora vai apontar todas as possíveis irregularidades?»