Os deputados nem queriam acreditar.
Pela primeira vez na História de Portugal um primeiro-ministro colocava no Parlamento a questão do racismo – e logo em relação a si próprio.
A reação de António Costa teve uma virtude: ele disse o que lhe ia na alma.
Sucede que um primeiro-ministro não pode dizer tudo o que sente ou lhe vem à cabeça.
Com aquela reação, Costa mostrou que, ao contrário do que todos pensávamos, tem alguns complexos relativamente à cor da sua pele.
No Parlamento, naquela altura, provavelmente ninguém estava a pensar na origem goesa do primeiro-ministro – exceto ele próprio.
Mas o caso levanta outras questões, muito delicadas.
Em Portugal, até há relativamente pouco tempo, o racismo não era um problema.
No Estado Novo, os governantes falavam sempre de uma «nação plurirracial» – agora diz-se ‘multicultural’ –, até para justificarem a política colonial, que excluía naturalmente a discriminação dos africanos.
Além disso, havia negros idolatrados – com Eusébio acima de todos –, o que fazia com que a cor da pele não fosse um estigma.
Não me lembro nessa época de se falar de problemas raciais em Portugal.
Curiosamente, a questão do racismo vai colocar-se depois do 25 de Abril por via de grupos extremistas: os skinheads e a extrema-esquerda.
Os skinheads tornaram-se tristemente célebres com ações contra africanos, numa das quais morreu o cabo-verdiano Alcindo Monteiro; e a extrema-esquerda aproveitou estes acontecimentos para fazer propaganda política.
A partir desta altura, de facto, figuras como Francisco Louçã e, depois, Catarina Martins, começaram a falar insistentemente da existência de racismo em Portugal e a apoiar os movimentos ditos antirracistas, como o SOS Racismo.
Nesta linha, depois dos primeiros acontecimentos no Bairro da Jamaica, o BE e movimentos a ele ligados acusaram a Polícia de uma «intervenção racista», colocando mais uma vez os eventuais excessos da autoridade no plano da ‘luta de raças’.
Ora, o que seguiu a essas acusações?
Sucessivas noites violentas em bairros da periferia de Lisboa, com o incêndio de contentores do lixo, destruição de carros, incêndio de um autocarro, montras partidas e apedrejamento de agentes policiais.
E qual foi perante isso a reação de muita gente nas redes sociais?
«Se os ‘pretos’ vêm para cá fazer distúrbios, o melhor é não virem».
Ou seja: a extrema-esquerda e certos movimentos pretensamente antirracistas acabaram por fomentar aquilo que diziam querer combater.
Deve dizer-se que é esta a tática seguida pelo BE no seu caminho de afirmação política: explora ao máximo os conflitos sociais para deles retirar dividendos políticos, independentemente das consequências que daí possam advir.
A paz social não interessa ao Bloco de Esquerda – o que interessa é a guerra entre ‘pretos’ e ‘brancos’, entre ‘explorados’ e ‘exploradores’, entre mulheres e homens, entre homossexuais e homofóbicos.
Nesta medida, pode dizer-se que o BE é um ‘desestabilizador social’.
Estimula os conflitos, esbraceja, vocifera, vai ao Parlamento lançar gasolina no fogo, não perde uma oportunidade para atiçar a guerra.
Ora, o Estado não pode entrar nesta lógica.
Como bem disse um dia destes Rui Pereira, uma intervenção da Polícia não é «um conflito entre polícias e desordeiros, considerados em planos iguais».
A Polícia não está no mesmo plano dos desordeiros – pois representa o braço do Estado e tem por função manter a ordem.
E tem o direito de recorrer à força para o conseguir.
Sucede que o PS tem uma tradição de desautorizar a Polícia, que leva as pessoas a desconfiar quando se dão confrontos deste tipo.
Sempre que há intervenções policiais em zonas problemáticas, a questão coloca-se: de que lado estão os socialistas?
Reprovam verdadeiramente os acontecimentos? Apoiam sinceramente a Polícia?
Todos se lembram de uma célebre frase de Mário Soares – «Senhor guarda, desapareça!» – disparada contra um batedor da PSP que ia a abrir caminho ao autocarro em que Soares seguia!
Talvez por isso – e não certamente pela cor da pele – Assunção Cristas insistiu com Costa para que repudiasse os desacatos entretanto ocorridos.
Mas ele reagiu como se sabe.
Agitou o espantalho do racismo – e logo ali, na ‘casa da democracia’!
E logo em relação a ele próprio!
O primeiro-ministro levantou ao mais alto nível uma questão que até há pouco não se colocava em Portugal.
Reações como esta não são admissíveis. São elas que espicaçam o racismo e podem conduzir a que ele se instale em Portugal.
E depois impõe-se uma pergunta: se Costa reagiu tão desastradamente nesta questão, que garantias existem de que não o faça noutras, igualmente graves?
Este episódio mostrou um outro António Costa – nervoso, incontrolado, acintoso –, que não augura nada de bom.
A frase sobre a cor da sua pele proferida por António Costa no Parlamento vai ficar na história da democracia em Portugal.