Polícia suspeita de envolvimento de funcionários da AT em fuga ao fisco milionária

Bruno Taipa não era, mas fazia-se passar por contabilista. Arranjou benefícios para os clientes, lesando o Estado em cerca de dois milhões de euros.

O falso contabilista preso esta semana por ter desfalcado o Estado é, à sua dimensão, uma espécie de Alves dos Reis dos tempos modernos. Mas enquanto o burlão do início do século XX falsificava notas, Bruno Taipa forjou, pelo menos desde 2013, contabilidade de cerca de cem empresas para jogar em diversos tabuleiros: enganar o Fisco e obter benefícios indevidos, conseguir empréstimos bancários (que depois não pagava) e até subsídios de desemprego. Com o dinheiro que ganhava, conseguia andar sempre com carros topo de gama e viver numa bela moradia, em Paços Ferreira – e isto apesar de não haver registo oficial de qualquer património em seu nome.

A Polícia Judiciária (PJ) tinha-o na sua mira há seis anos mas Bruno Taipa, de 45 anos, foi conseguindo sempre passar-lhe a perna. Graças à sua criatividade em engenharia financeira, Taipa juntou à sua volta quase uma centena de empresários, desconhecedores da natureza do burlão, e foi conseguindo ao longo dos anos benefícios fiscais, com a maior das facilidades. Estima-se que apenas em dois anos, entre 2016 e 2018, o líder da rede agora desmantelada lesou o Estado em cerca de dois milhões de euros. E as autoridades defendem que o golpe aos cofres públicos só terá sido possível com a ajuda de funcionários da Autoridade Tributária.

Na passada quarta-feira, a PJ – Diretoria do Norte, em articulação com a Autoridade Tributária (Direção de Finanças do Porto) – anunciou a detenção de onze indivíduos por suspeitas de crimes de crimes de associação criminosa, fraude fiscal qualificada, branqueamento, falsificação de documentos, burla tributária e fraude contra a Segurança Social.

Bruno Taipa era a cabeça por detrás deste esquema, mas não agia sozinho. Além das empresas ‘satélite’ criadas à sua volta e dos colaboradores leais com quem trabalhou, as autoridades suspeitam que o homem – que dizia ser contabilista sem o ser – tinha a ajuda de pessoas que trabalhavam na Autoridade Tributária: de acordo com o mandado de busca a que o SOL teve acesso, «existem fundadas suspeitas de que a organização criminosa já descrita, repita-se, mediante a intervenção direta de Bruno Ricardo Taipa de Sousa pratique factos suscetíveis de configurarem a prática do crime de corrupção ativa para ato lícito p. e p. pelos art.º 373 do C.P. e a título de coautoria (cf. art.º 26 do CP) tendo como interlocutor elementos da AT [Autoridade Tributária] ainda não identificados».

 

Em que consistia o esquema

O objetivo de Bruno Taipa era obter benefícios fiscais indevidos para os seus clientes, nomeadamente em termos de reembolsos de IVA e na diminuição artificial da matéria coletável para efeitos de IRC. Para isso, existiam sociedades emitentes de faturação falsa de compras e prestação de serviços. «Elaborou falsos documentos – contratos de trabalho, declarações de rendimentos, recibos de salários, inscrição ou manutenção de trabalhadores em empresas que sabia terem por objetivo o não pagamento das contribuições devidas à Segurança Social – de modo a obter para terceiros vantagens atribuídas pelo Estado», descreve o mandato de busca.

As escutas realizadas pelas autoridades mostram como os clientes de Bruno Taipa confiavam no seu esquema: quando começou a trabalhar com o falso contabilista, Januário Fonseca, sócio gerente de uma das suas empresas fictícias, perguntou-lhe: «Se já [sabia] como ia montar aquilo (…) se já tinha estudado tudo» — ao que Bruno Taipa responde, puxando dos galões: «Não estou a fazer experiências, já fiz isto várias vezes (…) Assumo responsabilidade pelo que faço».

E a verdade é que, para Bruno Taipa, valia tudo. António Fernando Machado Ferreira, suspeito de ser um dos seus ‘testas-de-ferro’ e a ‘cara’ de uma das empresas que criou para disponibilizar documentação, estava por trás da empresa de calçado HDVS. Das diligências já efetuadas, por exemplo, a PJ concluiu que Machado Ferreira emitiu faturas relativas à venda de solas de sapatos a uma empresa espanhola, a Teixeira Compraventa de Coches Ibéricos, que não se dedica ao fabrico de sapatos, mas sim de automóveis, como o próprio nome indica. Além disso, o transporte dessas mesmas solas também não foi efetuado.

Para conseguir manter este esquema, suspeita-se que Bruno Taipa «contou com a colaboração de terceiros que assumem o papel de ‘testas-de-ferro’ de tais sociedades e de técnicos oficiais de contas que atuam de acordo com instruções por si fornecidas (submissão declarações fiscais) ou emprestam as suas credenciais para submissão dessas declarações. De igual modo, contou com a colaboração de indivíduos que o ajudam na angariação de clientela e participam nos esquemas como modo da ganharem dinheiro», explica o mesmo documento. Além disso, como não era contabilista, Taipa fazia questão de contratar sempre um verdadeiro profissional desta área para assinar documentação necessária e fazer a ponte com a Autoridade Tributária.

Para manter um esquema desta dimensão, nada melhor do que trabalhar com as pessoas em quem mais confiava: Deolinda Moreira, companheira de Bruno Taipa, era responsável por duas das empresas-satélite e a sua mãe, Maria de Fátima Tavares da Silva, estava à frente da empresa Amigo Mistério S.A., suspeita de estar ligada à fabricação de documentação.

Mas o falso contabilista não recorria apenas à família. Bruno Taipa, que já foi investigado no âmbito de outros inquéritos e condenado pela prática de crimes da mesma natureza, pediu para usar os dados de uma amiga para pedir um empréstimo e acabou por oferecer-lhe uma compensação. Maria Ângela da Silva Neto estava sem emprego e vivia com algumas dificuldades financeiras. Por isso, Taipa fez-lhe uma proposta: a amiga fornecia-lhe dados para pedir um empréstimo para a compra de um automóvel para si próprio e, em forma de agradecimento, ele faria com que tivesse ‘direito’ ao subsídio de desemprego pelo valor máximo. Dito e feito: engendrou um contrato de emprego para Maria Ângela, criou um arquivo contributivo fantasma para entregar na Segurança Social e submeteu um IRS com esses valores. Após ter toda a documentação, falsificou ainda um documento referente a extratos bancários, submetendo toda a documentação em várias entidades para obter a concessão de crédito automóvel.

 

Escutas reveladoras

Numa conversa telefónica, Bruno Taipa fala com a sua irmã Lucília, que também está envolvida nestes esquemas, e pede-lhe para forjar um contrato em nome de Maria Ângela. Lucília explica que já tratou de tudo: o contrato é feito com a empresa Supergoma, o salário é de 2.100 euros líquidos e a função é técnica administrativa. Mais tarde, Taipa dá as boas notícias à amiga: «[O subsídio de desemprego] já foi aprovado, já foi deferido, dá €1.072, dá um ano e um mês. No dia 23 já vai receber».

E como é que Taipa e os que trabalhavam com ele tinham lucro? O caso da empresa Índice Secreto, uma das empresas que emitia faturas falsas, ilustra bem o negócio. As autoridades suspeitam que as empresas que recorriam aos seus serviços pagavam à Índice  23% do valor da faturação a título de IVA mais uma percentagem de serviço. O remanescente do valor que consta na fatura seria entregue aos sócios das empresas que pediam as fatura falsas. Às vezes surgiam problemas: quando Cláudio, dono da Índice e testa de ferro de Bruno Taipa, necessitava de levantar dinheiro da conta da empresa, o banco exigia que, a partir de determinada quantia, fossem apresentados justificativos para esses movimentos. Para tal,  arranjaram a solução de emitir um certo tipo de faturas falsas.

«O funcionário do banco telefonou ao Cláudio a dizer que precisa de documentação que justifique o dinheiro… [O Cláudio] só tem de trolha, mas como a tua é de aluguer de máquinas pode-se fazer aluguer de máquinas», diz Hernâni Cunha, angariador de clientes, a Bruno Taipa, durante uma conversa telefónica. E no que toca ao lucro para os elementos do esquema, nem sempre as coisas eram pacíficas: escutas recolhidas pela investigação mostram que, neste caso específico, existiu um conflito de interesses na distribuição dos dinheiros entre Bruno Taipa e Hernâni Cunha, por um lado, e Cláudio Pires por outro. Este último era o único que podia movimentar as contas bancárias da Índice e, por isso, o falso contabilista tinha medo que se «armasse em esperto». A verdade é que durante estes anos as coisas foram de feição a Taipa e para os que trabalhavam com ele.

Por lapso, na edição impressa do semanário SOL é feita uma referência a inspetores tributários e não funcionários da Autoridade Tributária. O erro já está corrigido na edição online.<\strong>