Malaca. A melancolia da Terra do Pai

Dos portugueses ficaram os nomes; dos holandeses os edifícios cor de salmão. A Famosa, que Afonso de Albuquerque mandou construir no alto da colina de São Paulo é uma ruína triste. Mas ainda há um subúrbio de pescadores que resiste ao tempo e onde teimam em falar uma espécie de português…

Henri Michaux, no seu irónico livro Um Bárbaro na Ásia, escreveu: «O malaio tem qualquer coisa de saudável, nobre, limpo, humano». E continua: «Todas essas raças originais, o chinês, o hindu, fazem má figura a seu lado. (…) O malaio detesta o estrépito. A sua cólera só aparece quando a paciência se esgotou e já não pode mais. Então massacra tudo, incluindo ele próprio». 

Mal se sai de Kuala Lumpur, ou KL, como os malaios gostam de lhe chamar, assim à americana, os cartazes anunciam a entrada no Estado de Selangor, a província que envolve na totalidade o Território Federal de Kuala Lumpur. Aqui se fabrica o «pewter»: uma liga de metais utilizada sobretudo em utensílios de cozinha e que permite manter a temperatura dos líquidos. Percorri a autoestrada federal, a mais antiga da Malásia, em direção às minas de estanho e às remotas cavernas de Batu, durante séculos escondidas pela ferocidade da selva. 

Centenas e centenas de pessoas carregam consigo imagens das divindades hindus. Tabuleiros coloridos, estatuetas berrantes, pratos de frutas e de flores, animais que servem de oferendas. Ainda não chegara janeiro, o mês de Thaipusan, quando os devotos de Subramaniam sobem os 272 degraus que conduzem à Caverna da Catedral vergastando-se e autoinfligindo-se todo o tipo de sofrimentos físicos, espetando na carne pregos e facas, trazendo pesos insuportáveis amarrados às pernas, aos braços e ao pescoço. Ah! O cilício e a mortificação da alma… Por isso, a caverna está meio vazia, as suas estalactites tombam do tecto na verticalidade dos seus mais de seis ou sete metros de comprimento, os morcegos multiplicam-se pela infinidade de grutas nas quais velas acesas se incrustam nas paredes húmidas. 

Um odor grosso a defecções de morcego entope o nariz e dificulta a respiração à medida que se anda às apalpadelas na escuridão. Diz-se que foi este cheiro nauseabundo que trouxe o comissário inglês da polícia de Selangor, H.C. Syers, até às cavernas de Batu, tantos anos perdidas no seu esconderijo verde. À saída, um guarda impecável na sua farda castanha faz uma vénia segura. «Nada de excessivamente digno, orgulhoso ou transcendental, não. Correto». Dizia Michaux e eu concordo.

A Malásia é um país recente de muitas maneiras. E não apenas na sua independência, que só ganhou contornos a partir de 1957, quando se soltou da colonização inglesa e, sobretudo, a partir de 1963, quando se juntou às restantes colónias britânicas de Sarawak, Sabah e Singapura para formar a Federação da Malásia. Singapura tornar-se-ia, por sua vez, independente em 1965. 

O desenvolvimento malaio como comunidade organizada só teve lugar nos últimos 160 anos. Antes disso, toda a península não passava de um desagregado de tribos de pescadores vivendo nas suas aldeias de madeira situadas junto ao mar ou nas margens enlameadas dos estuários dos rios.

Na esplanada do Restaurante Lisbon, observava as águas acastanhadas do Estreito de Malaca enquanto bebia uma cerveja morna e comia camarões fritos certamente num óleo velho. A preia-mar deixa à vista os caboucos de um cais meio desfeito e do pontão de madeira a que os locais chamam de «jetty». Barcos pequenos içam velas no horizonte. Esperava por George Alcântara, o chefe da comunidade portuguesa de Malaca. Ou melhor, destoutra Malaca, a Malaca portuguesa que é o bairro suburbano para o qual foi deslocada uma pequena comunidade de gente que se sente ligada a um país distante e a uma História tão antiga que muitos já esqueceram. A ideia de criar um bairro português nasceu, curiosamente, de um missionário francês, o padre Pierre François. Foi ele que, com o padre Álvaro Martim Coroado, adquiriu, em 1935, uns terrenos pantanosos em Ujong Pasir, o preciso lugar onde me sentei esticando o olhar até ao horizonte cinzento de mar e nuvens. Chamaram-lhe «A Terra do Pai». 

Já Malaca vê o nome perdido no labirinto dos que se debruçam sobre a sua origem. João de Barros afirmou, categórico, que queria dizer «Homem Desterrado». Homem? Que homem, esse? Talvez tenha sido empurrado pela poesia. Lá contam apenas que é o nome de uma árvore. Que dá uma espécie de groselhas. Um mirabólano. Estranho? Pois… de onde julgam que vem a palavra mirabolante? É preciso viajar para encontrar respostas. Sejam elas satisfatórias ou não. Isso já depende da crença de cada um… 

Portugal tão longe

Só depois de um moroso trabalho de drenagem foi possível começar a erguer habitações e atrair para elas essa estranha mistura de portugueses com asiáticos que os séculos tornaram escura de pele e que viviam nas vizinhanças de Kubu, Praya Lane, Kampong Hilir e Tranquerah. Há quem diga que os descendentes de portugueses na Malaca de hoje são mais de 450. Mas como distingui-los, a eles, que nem português falam? Enquanto esperava por George, entretinha-me na exploração da sua coleção de antiguidades e de moedas que estava exposta no restaurante. Recordações deslocadas de um Portugal caduco. «Nunca sentimos um grande apoio do Governo português», dir-me-ia: «Pedimos professores, nunca conseguimos ter nenhum em permanência. O português é ensinado de pai para filho e vai piorando com o tempo e com o passar das gerações». Nota-se. Ouvi palavras quase ininteligíveis de uma língua que suponho a minha. Muitas delas fazem parte desse vocabulário malaio, o Bahasa Melayu, uma espécie de «patchwork» criado a partir de uma mistura de línguas: bantal (avental), bendera (bandeira), bola (bola), capeo (chapéu), gereja (igreja), kadera (cadeira), keju (queijo), kemeja (camisa), komi (comer), meja (mesa), mentega (manteiga), misa (domingo, da palavra missa), ombak (onda), pai (pai), permisi (permissão), rompah (roupa), sekolah (escola), sepatu (sapato), tempo (tempo), tinta (tinta), tuala (toalha) ou graffu (garfo), entre tantas outras dezenas.

O próprio George não nasceu português, claro está. Nem mesmo natural de Malaca. Nasceu em Macau. Homem gordo, de barba pequena a afilar o queixo óculos largos. Falava devagar e perguntava-me se estaria em Lisboa, em dezembro, o mês da sua peregrinação anual a Portugal para buscar bacalhau para o Natal português de Malaca. Foi ele o principal responsável pelo desenvolvimento do bairro português de Malaca, longe que estamos do tempo em que as casas eram na sua maioria de madeira com telhados de colmo. Apresentou-me a Zep, o pescador de camarões. Zephysinus Theseira falava um português terrível – ele dizia que falava «cristão» – e era preciso um enorme esforço para entender as suas frases. Queixava-se de que os camarões não lhe chegavam para viver. E contava que, para retificar o orçamento familiar, se dedicava igualmente à carpintaria. O final da tarde era negro de chuva, mas continuava a soprar um vento quente. Depois, enfunava o peito de orgulho como vela de galeão: «Theseira! Nome português! Muito português!» De Teixeira, só pode ser.

Casamentos por conveniência

Os historiadores parecem estar de acordo quanto às débeis consequências da conquista portuguesa na vida da cidade de Malaca. A marca principal regista-se no afastamento do sultão e da sua corte e na sua substituição por uma nova administração, mais rudimentar e menos onerosa. Luís Filipe Thomaz, refere no seu livro «De Ceuta a Timor»: «A composição étnica da população sofreu algumas mudanças. O patriciado malaio tinha seguido o seu soberano no exílio, e os mercadores guzarates também desapareceram. Em contrapartida, um novo grupo fez a sua aparição: o dos casados, isto é, soldados portugueses que desposaram mulheres da terra. O Estado, desejoso de melhor assegurar a sua presença na Ásia, via este pequeno grupo com bons olhos; concedia dotes às esposas e entregava aos maridos propriedades confiscadas aos muçulmanos. (…) Os mestiços nascidos das numerosíssimas uniões, legítimas ou ilegítimas, com as asiáticas vieram naturalmente engrossar este grupo. (…) Estes portugueses, mestiços ou assimilados, estabeleceram-se sobretudo no centro da cidade, ao redor da fortaleza e da igreja, que tinham substituído respetivamente a mesquita e o palácio dos sultões. O bairro foi fortificado (entre 1527 e 1542) com baluartes e encheu-se de igrejas e conventos. Tornou-se assim uma cidade indo-portuguesa típica.» 

Os apelidos lusitanos são, portanto, mais firmes e soberbos do que as ruínas apodrecidas de ‘A Famosa’, esse forte mandado construir por Afonso de Albuquerque no alto da colina de São Paulo e cujas muralhas se foram alargando até rodear, um dia, toda a colina, guardando dentro de si a cidade europeia de Malaca. O espírito destrutivo dos ingleses não suportou a arrogância d’ ‘A Famosa’. E dela nada mais resta do que a imponência triste da porta de Santiago. Ficaram os nomes, portanto: Dias, Da Silva, D’Souza, Sequeira, D’Mello. «Dei a cada homem o seu cavalo, uma casa e um pedaço de terra», escreveu Albuquerque ao Rei D. Manuel em 1604, relatando o sucesso de mais de 200 casamentos mistos levados a cabo nessa semana. 

«Talvez consigamos um dia ter aqui um professor de português vindo de Lisboa, que ensine os nossos filhos a falar corretamente e com o qual eles aprendam a História de Portugal», suspirava George. Zeb acenava com a cabeça pensativo e bebia um golo de cerveja. «Devia vir a Malaca em junho para a festa de São Pedro», insistia George. «Devia vir ver como este bairro português fica ainda mais português com os enfeites das festas e com as danças folclóricas. Ou então no ‘Intrudu’ (ele pronunciava assim mesmo), que é o tempo de se encherem os barcos de fitas coloridas e de enchermos a igreja». É bem possível que vá. É bem possível que regresse pela estrada da saudade. Estou sempre a ir e a voltar de todos os lugares. 

Medan Portugis

A igreja é demasiado taciturna para chamar a atenção. Em seu redor, as casas são impessoais e as ruas estreitas. Medan Portugis, a Praça Portuguesa, não tem brilho. A Malaca portuguesa é um pedaço de povo sentado à beira mar sem espaço por onde fugir. O tempo passa devagar entre a hora a que o sol nasce e a hora em que o sol se põe. Ou, se calhar, nem passa. A igreja de São Paulo, no alto da colina, também não é mais do que um conjunto de paredes desabadas. É ainda possível imaginá-la dominando o Estreito, imaculadamente branca como a pintaram os jesuítas para que fosse vista à distância por todos os barcos. 

Para erguer ‘A Famosa’, Afonso de Albuquerque mandou demolir as mesquitas, os túmulos elaborados dos muçulmanos e o palácio dos sultões. O espírito destrutivo dos portugueses não fica nada a dever ao dos ingleses, convenhamos. E não suportou a idade de ouro do sultanato de Malaca, o sonho do príncipe Parameswara do lugar de Palimbão em Serivijaia, na ilha de Sumatra. Albuquerque (eles dizem Buquéqué) não admitia a vaidade dos príncipes. Logo ele, que tinha a vaidade de um rei dos mares.

As igrejas tomaram o lugar das mesquitas, e os palácios dos fidalgos tomaram os lugar dos palácios dos sultões até 1640, quando a perda da independência para a Espanha dos Felipes atraiu a cobiça dos holandeses que tomaram Malaca por sua vez. Há sempre um império à espera da queda de outro império…

Perdi-me por entre as vielas chinesas da cidade. Recantos de sombras, silêncios abruptos, vislumbres viscosos de gatos que se escondem. Lojas de cheiros intensos, velhos proprietários sem ambições de negócios. Caras de olhos estreitos e peles claras. «Babas», os chineses puros de Bukit China – «nonyas» são os filhos de chineses com malaios -, o morro que se levanta por detrás da igreja de São Francisco Xavier e das suas torres góticas. 

Acreditam os chineses que os montes são os lugares indicados para situar os cemitérios: protegem os mortos dos ventos do mal e oferecem-lhes uma vista privilegiada sobre os seus descendentes. Disseram-me que há em por todo o redor túmulos do tempo da Dinastia Ming, do tempo em que Hong Lim Poh, a filha do Filho do Céu, chegou a Malaca para desposar o sultão Mansor Shah. Nada, no entanto, poderia parecer mais entregue ao abandono melancólico das ervas que crescem a esmo. Caminhei ao longo da Jalan Laksamana em direção ao centro vermelho e laranja da Malaca holandesa, uma pequena praça dominada por uma torre de relógio e rodeada pelos antigos edifícios administrativos à qual só faltam as túlipas e as bicicletas para nos sentirmos em Utrecht, em Arnhem, ou em outra qualquer cidade do norte da Holanda. Os holandeses não deixaram os nomes nem a língua. Deixaram as linhas arredondadas da Stadthuys na sua incrível cor de salmão. Deixaram, ao fim ao cabo, a imagem mais marcante desta cidade meio adormecida, embalada pelas águas do Estreito de Malaca e do Rio de Malaca, que ganha de vez em quando momentos de excitação no movimento da Jalan Hang Jebat, que é a versão provinciana da Jalan Petaling de Kuala Lumpur –uma rua que se fecha ao trânsito e passa a ser dominada pelo movimento pedonal -, menos frenética, portanto. As lojas de antiguidades estão cheias de artigos curiosos, na sua maioria chineses. Mas há também vendedores de bebidas alcoólicas importadas, salões de cabeleireiros, casas funerárias, ervanárias prometendo soluções para todos os males à custa de produtos 100% naturais. Pequenos templos hindus e budistas surgem entalados entre clínicas de acupunctura, empresas de exportação, joalharias, agências de viagens e lojas de bicicletas. Um chinês gordo está sentado de pernas cruzadas – em flor de lótus – nos três degraus do seu cubículo onde os kriss, os punhais curvos dos malaios, e os batik, panos pintados com desenhos policromos, se atropelam a esmo. Um balão de papel engordurado está dependurado sobre a sua cabeça. Como se fosse o círculo vermelho de um sol poente.