O Papa no berço do Islão

Pedro Gil e Khalid Jamal, cristão e mulçumano, amigos e colegas do programa semanal da Antena 1 ‘E Deus criou o mundo’, estiveram esta semana em Abu Dhabi na visita histórica de Francisco ao berço do Islão. À distância de 8000 km, o b,i lançou-lhes o desafio: colocarem um ao outro uma pergunta sobre o…

O Papa no berço do Islão

Pedro Gil

Entrei na igreja às 18 horas de um domingo, “dia do Senhor” para os cristãos, embora dia de trabalho nos Emirados. Havia outras cinco missas naquela igreja noutros horários. Umas duas mil pessoas assistiam com recolhimento e devoção. Após o ‘Santo, santo, santo’ todos ajoelham até ao Pai Nosso (quem estiver acostumado, conhece). No ‘abraço da Paz’, que o Henrique Raposo já chamou a altura do beijinho, fazem uma vénia em direção ao altar, seguida de uma vénia sorridente à direita e à esquerda para quem está ao lado. A distribuição da comunhão está muito organizada. Uns ‘stewards’ vão para posições predefinidas e são eles a autorizar que, fila a fila, as pessoas se aproximem a comungar. Durante a cerimónia dezenas de pessoas esperam vez para chegar ao confessionário.
Muita gente jovem, muitos homens, e velhos e crianças. Não predominam idosos ou mulheres como em Portugal. Fui à missa de segunda-feira e “só” estavam umas 300 pessoas. Muitas delas eram dos 150 mil entusiastas reunidos no estádio desportivo de Abu Dhabi. O Papa disse-lhes que não podia haver cristãos de primeira e cristãos de segunda, talvez por ser comunidade ‘tutti frutti’ em países e raças, onde é um esforço e conquista viver em unidade sem discriminação. A mesma mensagem de fraternidade foi a que o Papa lançou nesta viagem para reforçar a importância crucial para o nosso mundo da convivência e do diálogo inter-religioso. O interlocutor do Papa Francisco neste encontro, o Grande Imam Al-Tayyib, sem ser o equivalente a um papa islâmico, é a personalidade mais importante para o islão sunita, que envolve 85% dos muçulmanos do mundo. Por isso é tão importante, ainda que seja somente um começo, a sua declaração conjunta com “um apelo vibrante a responder ao mal com o bem, a fortalecer o diálogo inter-religioso e a promover o respeito mútuo para bloquear o caminho daqueles que sopram no fogo do conflito de civilizações”, segundo o porta-voz do Vaticano.

A convivência é uma necessidade imperiosa neste país que, em dez milhões de habitantes, oito vêm de outros países. Os 900.000 católicos podem celebrar privadamente a fé, têm igrejas construídas com o apoio do Estado, podem usar símbolos religiosos, embora ainda não possam falar da fé nos meios de comunicação, organizar procissões, nem pôr a cruz no alto das igrejas. Todos desejam que a missa do Papa no estádio de Abu Dhabi seja um saudável precedente.
As duas igrejas onde estive são vizinhas de mesquitas. Vizinhança muito útil, pois, esta viagem que fiz com o Khalid Jamal,  enquanto ele se dirigia à mesquita para suas orações, eu aproveitava para entrar na igreja. Num mesmo largo coabitam a catedral de Abu Dhabi, uma igreja copta ortodoxa e a mesquita que agora recebeu o nome de Maria mãe de Jesus. Esse pequeno largo recebeu o nome de ‘garden of tolerance’ e assinala a visita conjunta do Papa Francisco e do grande Imam, durante este ano que o governo de Emirados Árabes Unidos significativamente chamou «ano da tolerância».

Num grande sinal de tolerância o Khalid Jamal quis acompanhar-me à missa do Papa. Não me surpreendeu porque é um muçulmano habituado a interessar-se profundamente por ouvir e por conhecer a fé dos outros. Como muçulmano que tem gosto por dedicar tempo a Deus em horas certas, foi uma ajuda oportuna para mim que assim fiz, com mais facilidade, as orações que gosto de fazer.

No Dubai, no teto do quarto do hotel um discreto ícone de uma mesquita aponta a direção de Meca e o armário oferece um tapete para as orações. Não sei que efeitos terá, no futuro, para os hotéis, a convivência inter religiosa, mas há nisso um sinal: a atração por Deus está entre os «bens de primeira necessidade». 

Khalid Jamal

Encontrámos uma capital de uma nação que já de si organizada, ainda mais se organizou para a receção do Sumo Pontífice. Para além da magna receção, digna de um chefe de Estado e religioso da ainda maior religião do mundo, menos popular por estas bandas, sentimos muita alegria e uma ansiedade e energias contagiantes. O que significará afinal para um católico a vinda do ‘Santo Padre’ a um país de maioria islâmica que não vê Jesus como filho de Deus?

No que concerne a um português que professa a religião islâmica, ocorrem-me várias vicissitudes, todas de grande relevância:

– Liberdade religiosa. É preciso enfatizar o mérito do Emir dos EAU que é o grande responsável por criar um clima ideal e propício no que concerne ao exercício da liberdade religiosa. Liberdade esta periclitante a nível global e ainda difícil em alguns dos seus vizinhos. Acresce a circunstância do Dubai, cidade mundial das 1001 noites e na qual “areia e arranha-céus se encontram, continua a ser uma importante encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente, entre o Norte e o Sul do planeta, um lugar de desenvolvimento, onde espaços outrora inóspitos reservam empregos para pessoas de várias nações.” (Papa Francisco durante a visita aos EAU, no discurso por ocasião do encontro com o Concelho Islâmico de Anciãos) ser um melting pot das mais variadas religiões e culturas, potenciando assim, do nosso ponto de vista inegavelmente uma maior tolerância, conforme demonstra o ano promovido pelo governo.

Esta tolerância vem responder aos anseios da população, que não nos pareceu ter qualquer atitude que revele uma vontade de imposição da sua fé, atitude essa que é também sentida pelos governantes do país, embora de forma naturalmente mais tímida. Exemplo simbólico é a alteração do nome de uma mesquita importante para “Mariam Umm-Eisa”, Maria Mãe de Jesus como prova da vontade no Diálogo inter-religioso. É preciso ser dito que este diálogo nem sempre tem sido fácil porquanto comporta diferenças irreconciliáveis do ponto de vista doutrinal entre estas duas fés de origem abraâmica e sobretudo no que toca à abordagem e visão de ambas em relação ao Criador. Dito de forma simplista, o Deus é o mesmo, mas as formas de chegar a Ele, bem diferentes. Isso ao invés de criar um fosso deve ao contrário, ser o primeiro passo – um reconhecimento – que nos leve a um verdadeiro diálogo que não pode ocorrer sem esta tríade de ingredientes,  como refere o Papa Francisco: sinceridade na intenção, verdade e oração.

Não se trata de criar uma ‘uniformidade forçada’, que muitas vezes se procura obter nas reuniões de alto nível: trata-se de perceber que é possível trilhar um caminho comum, cientes das nossas diferenças.

–Integração. Confesso que fiquei um pouco exasperado ao perceber que em frente à Igreja onde o Pedro Gil assistia à sua missa, existia uma mesquita, onde eu fazia a oração à mesa hora, bem menos cheia que a sua homóloga, minoritária, e isso provocou em mim uma comparação infeliz e imodesta em relação à nossa mesquita em Lisboa e à perceção por ventura errada que por vezes fazemos. Existindo uma mesquita em cada cem igrejas (outrora religião de Estado) é natural que tal ocorra e que fiquemos com a ideia enviesada de que as mesquitas estão mais cheias do que as igrejas em Portugal, e o inverso ocorre aqui nos EAU. 

Dito isto, a comunidade católica presente no país pareceu-nos bastante integrada e comprometida no seio da sociedade Emirati e isso revela uma capacidade extraordinária de lidar com a diferença. A propósito do termo minoria, que deve ser cada vez mais objeto de reflexão, permitimo-nos citar o Sheik Ahmed Al-Tayeb, grande Imã de Al-Azhar, que dirigido aos cristãos, disse algo que parece óbvio, mas por vezes torna-se invisível: «Vocês são parte desta nação. Vocês são cidadãos, não uma minoria. Cidadãos de pleno gozo, com todos os direitos e deveres». 

Do ponto de vista internacional, pensamos que esta visita já histórica inaugura uma nova dimensão no âmbito das relações bilaterais entre muçulmanos e católicos, procurando unir-nos na fraternidade, própria dos seres humanos.

– Terrorismo. Este alinhamento entre católicos e muçulmanos é fundamental no que toca ao combate ao terrorismo tantas vezes associado às religiões e recentemente em especial ao Islão. Em face da impopularidade das religiões ditas tradicionais, o Imam de Al-Azhar sugere que «continuemos a abraçar os nossos irmãos cristãos cidadãos de qualquer sítio, pois eles são nossos parceiros, nesta nação que é a humanidade».

Em jeito de reflexão e conclusão, termino com o tempero ideal para que esta receita faça sentido: o amor, indispensável entre as pessoas e que contribui para a cura da síndrome do ‘duplo discurso’ – quantos nós temos coragem de nos levantar dentro dos nossos templos e de dizer que o cristão ou muçulmano é meu irmão e portanto eu vou tratá-lo como tal? 

Que Deus semeie no coração de católicos e muçulmanos a semente da paz, do amor e da união.

Ameen