Uma Liga de afetos

É a única escola do país a ter uma associação sem fins lucrativos de ajuda aos desfavorecidos. Há 13 anos, um grupo de professoras e funcionárias da Escola Secundária Augusto Cabrita, no Barreiro, uniu-se para dar resposta às carências dos alunos, dos funcionários e dos próprios professores e criou a Liga Dos Amigos da ESAC.…

Uma Liga de afetos

No pico do verão de 2016, duas professoras enfiaram-se num carro em direção a Campo Maior. Precisavam urgentemente de arranjar emprego a um ex-aluno, lembraram-se da Delta e de bater à porta do comendador Rui Nabeiro. Marcaram uma reunião, pegaram no aluno e lá foram elas. «Melhor que ele só o Papa», conta entre risos Anabela Rosmaninho, professora de Filosofia e, a par de Fernanda Cristóvão, uma das autoras da demanda. O esforço foi recompensado com uma resposta positiva. «Desatámos a chorar», lembra.

Meteram-se no carro, voltaram ao Barreiro, e o tal aluno, de etnia cigana, continua hoje a ser funcionário da empresa – um dos melhores, afiançam-nos, já que de vez em quando ligam a saber novidades.

Não era a primeira vez que faziam algo do género. «Temos muito jeito para pedir», dizem-nos também a rir, quando começam a explicar-nos afinal que projeto é este que, depois de um início informal, é, desde há treze anos, a única organização do género numa escola portuguesa – a Liga dos Amigos da ESAC (Escola Secundária Augusto Cabrita, no Alto do Seixalinho, Barreiro). 

O mote que adotaram no início continua a ser o mesmo: ajudar os desfavorecidos da comunidade escolar, sejam eles alunos, funcionários ou professores. E o tal aluno a que arranjaram trabalho é apenas uma gota entre o número «incontável» de pessoas que já ajudaram. 

Há 13 anos que não há um único aluno do agrupamento que tenha faltado a uma visita de estudo por falta de dinheiro. Também deixaram de existir miúdos sem óculos quando deles precisam, ou miúdos sem ténis para as aulas de educação física, isto para citarmos alguns exemplos recorrentes.

A 7 de fevereiro de 2006 legalizaram a associação – cujo nome é reconhecido em Diário da República e está inscrita como ONG. E o projeto tem recebido um apoio incondicional de todas as direções que têm tomado posse na escola desde então.

A história da Liga dos Amigos da ESAC (Escola Secundária Augusto Cabrita) vai buscar forças ao velho e válido princípio que a união faz a força e começou a ser tecida de «forma muito natural» por estas professoras e funcionárias quando perceberam, primeiro, a quantidade de miúdos que ia para as aulas com fome. Se o exemplo é dramático, o número de crianças que iam para a escola sem tomar o pequeno almoço – «uma situação comum», garantem-nos» – é difícil de adjetivar. «Este é um meio muito, muito pobre, com carências a todos os níveis», diz Anabela. E quando a crise veio em força, a partir de 2008, os braços da Liga tiveram que se desdobrar ainda mais. «Com o fecho das fábricas, foi horrível», atalha Fernanda Cristóvão, professora de Economia. «Houve famílias inteiras a ficar sem emprego, muitos casais», lembra Anabela.

«Havia muitos miúdos que iam para a escola sem comer», reforça Graça Ferreira, funcionária da escola desde a sua abertura, há 30 anos. 

Durante os anos da crise, chegaram a pagar contas da luz e rendas – já os cabazes de comida que fizeram desde então também não têm conta. Houve uma vez, também no verão, em que tiveram que arranjar um frigorífico para uma das pessoas que ajudavam, que guardava a comida em arcas térmicas. E mesmo com os indicadores atuais da economia a dizer que as coisas amainaram e que a crise já lá vai, a realidade com se se vão deparando não é, afinal, assim tão diferente.

Mas como funciona, afinal, esta verdadeira rede social? O modus operandi é simples: as funcionárias, por estarem mais perto dos alunos, vão ‘sinalizando’ os casos, assim como os restantes professores da escola – por exemplo, no caso das visitas de estudo. Depois dirigem-se à Liga a explicar a situação e até agora ninguém recebeu um não em troca. «Normalmente não damos dinheiro, mas damos os cartões carregados para as pessoas irem ao supermercado, ou para irem escolher a roupa. Cada pessoa deve poder escolher o que vestir e o que comer. Ou então se um miúdo precisa dos óculos, damos os óculos», explica Fernanda Cristóvão. No caso das contas de farmácia ou similares, as pessoas que solicitam ajuda levam depois a fatura. E vão lidando assim, com a informalidade e naturalidade com que iniciaram este projeto, com as situações. Até agora não tiveram problemas, nem sentiram aproveitamento de qualquer uma das partes – apenas gratidão.

Hoje o núcleo duro da Liga dos Amigos da ESAC, por assim dizer, é formado pelas professoras Anabela Soares, Anabela Rosmaninho, Fernanda Cristóvão e pelas funcionárias Graça Ferreira e Emília Caetano. Toda a gente as conhece na escola, e é a elas que se dirigem quando sinalizam um caso. Outras vezes, quem precisa de ajuda pede-lhes diretamente. Estas professoras e funcionárias são, por norma, as únicas pessoas que sabem quem está a ser ajudado – e efetivamente não há apenas alunos com carências, também houve funcionários e até professores a precisar de ajuda . «Claro que se um associado perguntar [têm cerca de duzentas pessoas a pagar quotas] dizemos quem é, mas a ideia é resguardar a dignidade das pessoas», diz Fernanda. 

Neste esquema, as funcionárias, por lidarem com os alunos fora do ambiente das salas de aula, têm um papel «fulcral», reforçam as professoras. Graça é exemplo dessa entrega – sempre com o «radar» ligado, vai-nos contando das faturas de farmácia que já pagaram, e até de uma cirurgia oncológica ‘patrocinada’ pela Liga. «Como estamos mais por fora apercebemo-nos de muitas situações», explica.

Grão a grão: dos doces aos calendários

Mas como se arranjam fundos para acudir uma comunidade escolar composta por mais de mil pessoas? «Não nos faltam ideias», diz Fernanda Cristóvão, a que as colegas carinhosamente reconhecem um jeito especial para angariar patrocínios, recordando uma certa vez em foi a um stand de automóveis apresentar o projeto e saiu de lá com um cheque de 500 euros. «Apoiamos sempre as ideias umas das outras. Uma diz mata…», interrompe a rir Anabela. E se é pela barriga que se conquistam caras metades, é também muitas vezes pela barriga que vão recolhendo fundos.

O bolo de banana de Graça já é conhecido, assim como o de abóbora de Fernanda ao qual junta os esses de Azeitão. Levam com frequência as iguarias para a escola, onde são vendidas, e também lá têm uma máquina de café à disposição. Não há ninguém a controlar se quem se serve deixa no ‘mealheiro’ o dinheiro pedido pelo bolo ou café. E nunca ninguém se serviu sem pagar? «Se se serviu é porque estava com fome e o propósito também foi cumprido», descomplica Fernanda. Outra vez, foram comprar quilos e quilos de massa de pão à padaria e inventaram uma espécie de bolo do caco que também venderam «com um enorme sucesso» no intervalo. E em vez da Feira da Ladra, começaram a organizar a «feira da pulga». «Já fomos vender bricabraque para a rua, estendemos um lençol e pronto», lembra Fernanda. 

Mas há mais: no ano passado, lançaram uns curiosos calendários onde, brincando com o nome da Liga, pediram aos colegas – todos homens – para ‘emprestarem’ as pernas ao manifesto. Outra professora dedicou-se a fazer uma liga que representasse cada mês e o resultado foi hilariante (ver fotos acima).

Em última instância, vai-se buscar dinheiro guardado. «Temos a conta no banco mas não gostamos de ir lá buscar as poupanças», conta Fernanda, a nossa professora de Economia, a sorrir. «Se é preciso um frigorífico, primeiro vamos tentar arranjar patrocinadores, depois logo se vê».

Dinheiro recolhido, até ‘usam’ os miúdos para as ajudar a contá-lo. «Adoram contar e organizar o dinheiro, e sentem que fazem parte do processo».

Um impacto transversal

À roda da mesa da casa de Anabela, as nossas três interlocutoras vão falando com satisfação de tudo o que já conseguiram e de como este projeto se tornou importante nas suas próprias vidas.

Para a celebração dos 13.ª aniversário da Liga, na semana passada, Anabela lembrou-se de envolver toda a comunidade escolar a fazer sopa. Lá conseguiram patrocínios, angariaram centenas de quilos de legumes e depois envolveram toda a gente no processo. «Os miúdos a cortar cenouras só diziam: se a minha mãe me visse a fazer isto nem ia acreditar…».

E que impacto tem este projeto nos alunos? Além do sentimento de pertença, e mais do que lhes reforçar a autoestima, as professoras dizem que este é um projeto de afetos – e que os alunos sentem, efetivamente, esta mão a amparar-lhes o colo. Mas não são só eles a ganhar. Anabela, Fernanda e Graça dizem sentir que recebem muito mais do que dão. E numa dada altura, em que a classe dos professores e funcionários se sentia muito desmotivada e até maltratada, foi à Liga que foram buscar ânimo e motivação. «Os colegas que vão chegando à escola até estranham, dizem que estamos sempre em festa», diz Anabela, que está na escola há 18 anos. Fernanda já é aqui professora há 28. E este trabalho extra, ao qual nem sabem quantas horas dedicam por semana, faz, ao fim ao cabo, parte da forma como ambas pensam – e sentem – o que é, afinal, ensinar. «É viver a profissão de professor com verdadeiro espírito de missão», resumem.

No ano passado, quase por carolice, enviaram uma candidatura ao prémio internacional Amizade, atribuído pela Federação Nacional de Professores de Itália. Com a simplicidade que tem caracterizado a Liga, escreveram numa hora um texto a explicar o projeto. Em dezembro, chegou uma resposta de Itália: ganharam. «Criar uma corrente de solidariedade para com os ‘desfavorecidos’ hoje, nesta sociedade distraída e essencialmente materialista, é algo sublime que ilumina a escuridão da alma e convida a refletir sobre os verdadeiros valores da vida. A Liga dos Amigos da ESAC é um exemplo de dedicação humana que tem o único propósito de fazer ‘sorrir’ mesmo aqueles que por situações objetivas, não teriam razão para fazê-lo, dedicando-se a muitas atividades lucrativas para as converter numa ajuda atenciosa, espalhada pelo território sem distinção se o de ser de ajuda e de conforto para quem precisa», lê-se na nota do júri liderado por Natina Cristiano.

Em abril, vão à Roménia receber o prémio. E, estando ou não ligado, a ESAC – que no ano passado estava no 422.º lugar do ranking e tinha uma média negativa (9,78), este ano subir para a 338.ª posição e passou a ter uma média de 10,36 nos exames. Acaso, sorte ou esforço da comunidade escolar, o mérito da serem a casa de um dos mais bonitos e simples projetos de entreajuda ninguém lhes tira.