Orquestra Geração. ‘Diziam-nos que num mês não íamos ter instrumentos’

Começaram no ano letivo de 2007/2008 com uma primeira Orquestra Geração na Escola Básica Miguel Torga, no bairro Casal da Boba na Amadora. Atuaram na última terça-feira na Ópera de Nice. António Wagner Diniz, músico e então presidente do Conservatório Nacional, foi um dos mentores do projeto, que continua a coordenar. Não esconde o orgulho…

Orquestra Geração. ‘Diziam-nos que num mês não íamos ter instrumentos’

Começaram no ano letivo de 2007/2008 com uma primeira Orquestra Geração na Escola Básica Miguel Torga, no bairro Casal da Boba na Amadora. Atuaram na última terça-feira na Ópera de Nice. António Wagner Diniz, músico e então presidente do Conservatório Nacional, foi um dos mentores do projeto, que continua a coordenar. Não esconde o orgulho e partilha os novos voos: uma orquestra para crianças do pré-escolar, comunidades que estreitem os laços entre os mais novos e os seniores, uma incubadora que ajude os jovens que chegaram a Nice a seguir a música profissional. São uma escola de cidadania, componente que faz falta no ensino, acredita. Fala do que descobriu ao trabalhar com escolas dos bairros ditos difíceis, o que os rankings nem sempre captam – da falta de meios aos diretores que não desistem.

Quando começaram a Orquestra Geração imaginava que um dia os jovens estivessem a atuar na Ópera de Nice, como aconteceu esta semana?

Somos ambiciosos, mas nunca pensei. Cumprimos o nosso objetivo. Trabalhamos em bairros periféricos de Lisboa, alguns como a Cova da Moura, Apelação, Boavista. Pela estrutura da própria sociedade, os miúdos em princípio teriam um leque mais pequeno de opções. Terem conseguido formar-se de forma a constituir uma orquestra que é convidada a ir ao estrangeiro é muito bom. Para eles é algo que não só orgulha mas dá mais coragem para tomarem outras opções nas suas vidas.

É uma forma de empoderamento?

Há uma responsabilização dos alunos e a apresentação pública dá-lhes esse empowerment: têm consciência se tocaram bem ou mal e que, tendo tocado mal, podem resolver em conjunto o problema, terão outro concerto para tocar melhor.

Fale-nos deste grupo que atuou em Nice. 

São os mais avançados, muitos deles têm dez anos de projeto.

Foram dos primeiros alunos abrangidos?

Muitos sim. A nossa vantagem é que não obrigados a passar x anos por nível: à medida que vão avançando podem saltar níveis. Neste grupo temos pessoas que começaram no início do projeto e outros que têm menos anos de estudo musical.

Os que começaram há 10 anos estavam em que ano da escola?

No 5º ou 6º ano. Trabalhamos em escolas básicas da região de Lisboa e Coimbra, muitas delas os chamados territórios TEIP.

As escolas mais problemáticas.

Sim. Começamos com as crianças de seis ou sete anos e vão avançando.

Lembra-se deles com essas idades? Eram reguilas?

Tínhamos todo o tipo de miúdos. Tínhamos os miúdos que quase que batiam nos professores, tínhamos miúdos que não. De qualquer maneira, quando entravam na orquestra e se fidelizavam – é muito normal que no primeiro ano haja grande movimentação dos que entram e saem – o comportamento torna-se diferente. Mas também há miúdos que são fantásticos na orquestra mas continuam a ter problemas nas aulas.

A maioria consegue transpor o trabalho da orquestra para o desempenho escolar?

Muitos sim. Estão sete horas por semana a estudar música, das quais seis em grupo. Isto faz com que a atenção tenha de ser permanente, têm de responder ao maestro. Isto leva a que a capacidade de concentração aumente. Aumentando, não é só aplicada na música, mas nas outras disciplinas. Fizemos um estudo com duas escolas envolvidas e vimos que nas disciplinas de matemática e português havia uma melhoria no desempenho. 

Há algum caso que lhe tenha ficado na cabeça?

Temos vários casos, para mim eles são todos iguais. Lembro-me de um miúdo que não continuou connosco mas que quando começou parecia quase que um animal selvagem, quase não falava. Teria 11 ou 12 anos. Através da orquestra foi socializando. A certa altura saiu mas está mais integrado. O nosso objetivo não é formar músicos, é mostrar-lhes as estradas possíveis para que possam continuar. Não avalio o sucesso do projeto por termos formado x músicos – por acaso temos bastantes a seguir esta área, mas nem todos os fazem.

Pela experiência que tem tido nas escolas, esse trabalho de socialização que fez a diferença nesse aluno é possível ser feito no espaço da aula?

Eu acho que a música é fundamental. É uma pena que a música no ensino oficial tenha só dois anos: as pessoas vêm do nada e partem para o nada. O ministério argumenta que há programas desde o jardim infantil: pois há, mas ninguém os faz. Um trabalho como este de orquestra é importante pelo espírito de pertença que cria. Complementa as disciplinas técnicas. Se as disciplinas técnicas hoje em dia sabemos que originaram roubos de bancos, etc., porque não tentar outro tipo de formação que valorize a componente humanística e de trabalho conjunto para formar pessoas mais aptas para lidar com estes problemas?

Porque é que não se avança por aí? São as expectativas dos pais, querem filhos engenheiros…

Também, mas isto não impede que os filhos sejam engenheiros. É uma disciplina que os faz descobrir formas de convivência uns com os outros e de ultrapassar obstáculos. Percebem no que estão mal e evoluem. É um sistema de auto validação.

De autoconhecimento?

Sim. Em conjunto e individualmente podem superar-se. E daí eu pensar que é uma componente importante para a formação da cidadania. Claro que isto é possível num projeto como este porque todas as semanas têm uma componente de trabalho individual com o professor, em que o professor pode detetar uma série de problemas. Numa turma de 30 alunos isto é muito difícil. Trabalhamos em escolas onde há essas turmas de 20 e 30 alunos e vemos como é difícil dar aulas.

Tentaram dissuadi-lo de lançar um projeto em escolas problemáticas?

Pelo contrário, procurámos estas escolas.

Mas nunca lhe disseram «és maluco»?

O que diziam era «és maluco em emprestar os instrumentos aos miúdos». Diziam-nos que dentro de um mês não íamos ter instrumentos. Ora até hoje não tivemos um instrumento roubado. Os interesses dos miúdos também viram um bocadinho. Passam a ter aquele conjunto de amigos. Ocupamos os tempos livres e o ócio. Mas mesmo que nos desaconselhassem, sou muito cabeçudo.

Conhecia a realidade dos bairros mais periféricos?

Andei no Liceu Padre António Vieira e tínhamos uma ação numas barracas que havia ali ao pé, uma ação ligada à igreja. Já tinha tido uma experiência de trabalho com pessoas numa situação economicamente débil, mas há muito tempo.

O que o impressionou mais quando voltou a estar em contacto com estes jovens e famílias?

Não haver tempo na nossa educação para considerar os miúdos enquanto pessoas. O professor não tem tempo para saber se o miúdo faltou porque esteve a tomar conta dos irmãos ou do pai e da mãe e não por ter ido comer bombons ou roubar. Essa incapacidade de conhecer – incapacidade temporal porque isto é difícil numa turma de 30 alunos – é o que me parece que vai determinar o insucesso que depois se verifica nestas escolas.

Há problemas sociais que não são detetadas precocemente?

Evidente. Estamos a falar de bairros onde não há tanto trabalho de retaguarda. Por exemplo um miúdo não pode ir pedir aos pais que o ajude nos trabalhos de casa, porque sabem menos do que ele. Ou não há pais. Com um menino do São João de Brito isto não acontece. Terá outros problemas, eventualmente, mas pode recorrer a um explicador. Estes miúdos estão sem rede. Portanto neste tipo de escolas fazer turmas de quase 30 alunos é um disparate. Devia haver turmas muito mais pequenas, de dez alunos, para que o professor pudesse ser tutor e mentor dos alunos.

E sente que os professores queriam ter esse papel?

Os nossos têm conseguido. E acho que se os outros tivessem essas condições até a forma de ensinar se modificava, a criatividade podia ser muito maior. Podiam adaptar as disciplinas ao que eles sabem de base. Agora já existe a possibilidade de 25% do currículo ser escolhido pelas próprias escolas, até acho que devia poder ser mais. Isto dá a oportunidade aos professores de conhecerem melhor os seus alunos e adaptar o que é exigido pelo programa para que possam começar do ponto onde estão. Ligou-me por causa dos rankings: que escolas estão sempre lá em baixo?

A escola onde começou a Orquestra Geração, a Básica Miguel Torga na Amadora, aparecia no ano passado na 978ª posição [Este ano está no 975º lugar]. Como olha para os rankings apresentados desta forma? Fazem sentido?

É natural que ocupe esse lugar. Se faz sentido… eu acho que não tem muito sentido porque não se fala das questões que contribuem para estes lugares: o contexto social, o nível económico das famílias, etc. Quando uma escola destas consegue avançar um ponto que seja num ano é algo de extraordinário naquelas circunstâncias. Os rankings são um pouco ilusórios. Podem ser bons para as escolas que estão à frente porque toda a gente se quer inscrever, muitas são privadas, garantem as matrículas. Mas em relação às outras, é como digo, um aumento de um ponto pode ser o equivalente às que estão em cima aumentaram 20 ou 30. É preciso considerar o ponto de partida das escolas.

Hoje já se começa a fazer essa análise.

Faz-se mas não se corrige. Não se dá os meios. Maior diminuição dos alunos por turma, maior adaptação dos currículos. «É muito caro». Muito bem, mas depois não se diga que o investimento em educação é muito importante. Esta questão dos funcionários administrativos que as escolas não têm é um bom exemplo. Têm um papel importante nas escolas, de controlo, de relacionamento com os alunos. Se as escolas não têm pessoal suficiente, torna-se muito difícil, para mais nestes tipos de escolas. Não estamos a falar de 15 alunos, estamos a falar de mil alunos, por vezes em bairros onde há conflitos até estruturais, juntam-se etnias que não se dão tradicionalmente bem. Tudo isto abre a possibilidade de haver situações explosivas. 

O sistema atual não previne os problemas?

É chapa três. Às vezes dá-me a impressão que as pessoas que determinam os programas não conhecem estas realidades. Se fossem a estas escolas com certeza teriam ideias interessantes para resolver os problemas. Assim limitamo-nos a duas, três ou quatro escolas que conseguem aplicar outro tipo de metodologia. 

Das escolas onde tem estado, que imagem reteve?

Há uma coisa que me faz muita impressão que é a própria arquitetura das escolas. As escolas são feitas cheias de recantos e recantinhos, como a nossa construção social no fundo, e isto pode potenciar problemas. As escolas que estão organizadas são as que têm menos problemas. Se a escola está mal organizada, se está degradada, nota-se logo, há mais indisciplina. Uma pessoa não gosta de estar num ambiente feio. Num ambiente feio, cheio de recantos, uma pessoa não se sente bem. Ainda há muitas assimetrias e principalmente nas zonas urbanas nota-se isso. Outra coisa que quero dizer é que estas escolas em bairros mais difíceis têm a sorte de ter os diretores que têm. Muito do equilíbrio que se vai conseguindo deve-se aos conselhos diretivos. Não estou a dar manteiga, é mesmo o que tenho notado nas escolas onde estamos. São pessoas com ideias ousadas e que não desistem dos miúdos.

O caso no Bairro da Jamaica suscitou o debate em torno do racismo. Vê racismo nas escolas?

Na nossa orquestra não temos problemas de racismo. Temos rapazes negros a namorar com raparigas brancas e vice-versa. Não se sente essa tensão, de forma nenhuma. 

E a pobreza, é visível?

Na altura da crise o primeiro-ministro foi visitar uma das escolas. Passos Coelho tinha uma formação lírica. Nós íamos tocar a nona sinfonia e ele disse que queria cantar com a orquestra. Fui mais cedo, estava o professor a ensaiar e eles estavam maus e a certa altura pergunto: ‘então, quem é que não tomou o pequeno almoço?’. Levantaram-se 20 braços. Houve circunstâncias em que os miúdos passaram fome. Se não fosse a escola a fornecer refeições extra teria havido mais problemas.

E hoje?

Penso que a situação económica melhorou, poderá haver uma situação ou outra, mas naquele momento era um problema nítido. 

Recorda-se da primeira conversa que teve sobre esta ideia de criar a Orquestra Geração?

Foi com o responsável pela educação da Câmara da Amadora, o Dr. Jorge Miranda. Eu era presidente do Conservatório e ele tinha lá o filho. Costumávamos conversar e um dia disse-me que estavam a fazer um projeto com o apoio de um programa europeu e com a Gulbenkian na Escola Miguel Torga. Chamava-se projeto Geração e a ideia era dar oportunidade às jovens grávidas, aos miúdos que repetiam vários anos, de terem outro tipo de formação que os ajudasse a integrarem-se no mercado de trabalho. Por que não incluir uma parte musical? Lembrei-me de quando tinha estado bolseiro na Suíça: amigos venezuelanos levaram-me um dia a ver a orquestra Teresa Carreño, que era uma das orquestras do El Sistema.

Um projeto de orquestras juvenis criado nos anos 70 na Venezuela.

Sim. Quando tive aquele primeiro contacto achei o nível espantoso. Miúdos pequenos a tocar. Quando surge esta conversa pensei logo em implementarmos cá o El Sistema, ainda para mais tendo cá músicos venezuelanos que tinham tido aquela formação.

Quem?

A Ana Manzanilla, da Orquestra Gulbenkian e o Pedro Muñoz, que estava na Orquestra Sinfónica Portuguesa. Fui falar com eles e avançámos. Desde então estivemos sempre muito ligados à Venezuela.

Tem relatos da atual situação no país? 

Os músicos descrevem tudo aquilo que vemos na televisão, a falta de remédios, a falta de comida, a insegurança.

A orquestra continua a funcionar?

Levou um terrível golpe. O maestro Dudamel, o músico mais conhecido, diretor artístico da Orquestra Filarmónica de Los Angeles, fez a certa altura uma intervenção a condenar uma situação em que foi morto um miúdo violinista. Como represália, o presidente Maduro cortou as verbas. Por outro lado as orquestras espetaculares que eles tinham faziam muitas tournées e muitos, vendo a situação no país, foram ficando fora. Neste momento estão a tentar reconstruir o projeto. No tempo da guerra fria perguntava-se: «O que é um quarteto de músicos russos que regressa a Moscovo? É o que ficou de uma tournée de uma orquestra sinfónica”. Aconteceu um pouco isso.

Wagner é nome artístico?

É nome de família. A minha família é alemã.

Descendente de Wagner?

Não. Por acaso era mais ou menos da mesma zona, pode ser que mais lá para trás tenha havido qualquer coisa. Vieram em 1850, no tempo de D. Fernando II. Era uma família de músicos. O meu tio trisavô foi músico de câmara do rei D. Luís. Os filhos foram todos professores do Conservatório. A partir daí deixou de haver músicos. Um tio meu era violinista e depois fui eu. Fiz carreira como cantor.

Que sonhos tem ainda para a Orquestra Geração?

Reformar-me e isto continuar. Faltam dois, três anos. Gostava que não houvesse quebra e temos trabalhado nesse sentido. E temos novos projetos. Um já está a funcionar: começámos a trabalhar ao nível dos jardins infantis com a orquestra de afetos. Temos o apoio do programa PARTIS da Gulbenkian e tem estado a funcionar bem.

Também em bairros problemáticos?

Sim, na Alta de Lisboa, na Outurela em Oeiras. E agora queria incentivar mais dois projetos. Um na zona de Coimbra, afetada pelos fogos, onde queremos constituir comunidades Geração. Fazer um trabalho de orquestra mas em relação com a comunidade, com as filarmónicas, coros, fazer animações em residências de seniores. O outro é com estes miúdos que foram a Nice constituir uma orquestra pré-profissional que lhes dê um balanço extra para que possam fazer audições nas orquestras mais avançadas.

Uma incubadora?

É isso. Há incubadoras para tudo, ainda não há para música. E terá outra componente: visto que eles vêm de um projeto de intervenção social, a ideia é que cada um dos jovens desenvolva também um mini projeto a apresentar no fim do ano. E queremos direcionar isto mais para os seniores.

A música como agente de mudança social.

Sim, para o próprio aluno e para a comunidade.

Em fim de semana de rankings, que música escolheria como banda-sonora para o estado da educação?

A parte final do requiem In Paradisum, uma esperança de que a coisa melhore. De resto, é continuar como temos feito até aqui. Olhe um mambo de Bernstein, uma coisa muito viva.