Faltam remédios nas farmácias

As farmácias já não faturam tanto e estão sem medicamentos para vender. A redução de stock é um problema que o Infarmed diz ser da inteira responsabilidade das farmácias.

«Há anos que há falta de medicamentos e, neste momento, em mais de cem linhas de medicamentos é necessário ter um stock mais alto». As queixas de Ricardo Alves (nome fictício), técnico responsável pelo stock de medicamentos de uma farmácia no centro de Lisboa não são uma exceção. São a regra. Faltam medicamentos nas farmácias e apesar de o assunto não ser novo, continua a prejudicar dia após dia muitos portugueses. Ao SOL vários farmacêuticos e técnicos de farmácia garantiram esta semana que o problema está longe de estar resolvido.  Só no ano passado, foram reportadas 64 milhões de embalagens de medicamentos em falta nas farmácias portuguesas, o que significa que parte da população ficou impedida de tomar os medicamentos prescritos pelo médico. Segundo a Associação Nacional de Farmácias, este número é superior em 16 milhões quando comparado com 2017.

E as dificuldades reportadas ao SOL em diversas farmácias da capital não são apenas locais, estendem-se ao país inteiro e a praticamente todas as mais de 2 900 farmácias que existem em Portugal. Em Lisboa, farmacêuticos de vários estabelecimentos visitados pelo SOL queixaram-se da falta do medicamento Aldactazine, um diurético utilizado para aumentar a produção de urina. A medicação para doentes de Parkinson também continua em falta em algumas farmácias, assim como os medicamentos para tratamento da asma. A Boerringher é uma das empresas farmacêuticas de acesso mais difícil, estando em falta medicamentos como o Trajenta, para os diabetes, ou o Atrovent PA, para tratamento da asma ou bronquite. Ricardo Alves foi um dos que deu o exemplo do Trajenta: «Na nossa farmácia vendemos umas 40 unidades por mês, dez caixas por semana. Se eu conseguisse pedir quando quisesse, se calhar pedia um stock de seis ou sete, mas quando tenho 12 em stock já estou a pedir a todos os armazenistas. Peço dez e, se vier, vem uma, por especial favor».

 

Critérios de prioridade

Quase 25% da rede das farmácias portuguesas está em processo de penhora e insolvência, o que corresponde a 675 farmácias. Isto, associado à falta de medicamentos para vender, revela-se insustentável. Paula Teixeira (nome fictício), farmacêutica, explicou ao SOL que «as farmácias não podem ter stock parado, porque é dinheiro perdido». «No caso de medicamentos que a farmácia não vende muito e, por isso, não tem em stock dificilmente consegue arranjar uma caixa para um utente», acrescenta.

As farmácias tentam sempre contornar esta falha. Por exemplo, quando se verificou a falta do medicamento do Parkinson, «havia farmácias que alegavam ter lares sob responsabilidade para conseguirem medicação», explica Paula Teixeira, já que assim as farmácias são prioritárias em relação às que não têm lares.

Em qualquer dos casos, o mundo farmacêutico é também um negócio que começa a partir do momento em que o comprimido é produzido. Segundo vários farmacêuticos, os critérios de prioridade começam com o tipo de cliente. «Se há um cliente que vem mais vezes, esse doente é prioritário. Por mais que digam: ‘ah, não, é sempre de acordo com a posologia e é prioritário porque toma seis comprimidos por dia’, isso é mentira. Se o doente fizer um comprimido por dia e for cliente da farmácia, é ele que leva a medicação», diz Paula Teixeira. Este critério é também partilhado pelos armazenistas: se houver uma farmácia com uma maior quota, então vai ter o medicamento primeiro – «a preferência comercial é um critério de prioritização».

 

Responsabilidades

É difícil chegar à raiz do problema e, tal como refere Ricardo Alves, «haverá aqui responsabilidades de muitos lados». É correto dizer que o laboratório não envia? Em alguns casos há, de facto, falta de matéria-prima, mas não é sempre. Imagine-se o seguinte cenário: «Portugal pede normalmente mil unidades e, se for preciso, de repente, está a pedir dez mil, e depois essas dez mil não foram vendidas cá e aparecem embalagens portuguesas em países onde esse laboratório também tem representação». Neste caso, obviamente, o laboratório, que já atingiu a quota com o país, não vai enviar mais medicamentos.

«A exportação é uma questão muito importante, se calhar um produto que cá vale vinte euros, em Angola vale cem, ou mais», refere Ricardo.

Do lado dos distribuidores, o SOL contactou a Alliance Healthcare, que garantiu que todos os dias colocam «milhares de ordens de compras que só são abastecidas parcialmente». Em relação às necessidades «de consumo do mercado português», as previsões dos fornecedores «revelam-se abaixo das necessidades reais».

Quanto ao Infarmed, as farmácias portuguesas garantem que a autoridade do medicamento tem conhecimento dos fármacos em falta, até porque o próprio sistema das farmácias permite comunicar ao Infarmed as falhas.

O Infarmed garante que as inspeções realizadas não detetaram qualquer problema. Ainda assim, decidiu esta semana intensificar as ações de inspeção com o objetivo de detetar eventuais falhas de medicamentos.

A propósito da falta de medicamentos, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos reuniu-se durante a manhã de ontem para assinar uma petição pública «Salvar as Farmácias, Cumprir o SNS».