Vaticano. Manual de comportamento para padres com filhos

É a primeira vez que a Igreja admite ter diretrizes sobre o assunto. Pede que os padres reconheçam os filhos, mas não sanciona quem não o faz

“Posso confirmar que essas diretrizes existem”, respondeu o porta-voz do Vaticano, Alessandro Gisotti, quando questionado pelo “New York Times” sobre a existência de orientações da Igreja Católica para lidar com padres que quebram o celibato e têm filhos. Pela primeira vez, o Vaticano reconhece publicamente ter um protocolo para o efeito.

O porta-voz da Igreja afirmou que o documento interno, datado de 2017, sintetiza as práticas da última década, cujo “princípio fundamental” é a “proteção da criança”, “pedindo” ao padre que “assuma as suas responsabilidades como pai, devotando–se exclusivamente à criança”.

Esta posição está em linha com a do Papa Francisco, que no seu livro “No Céu e na Terra”, escrito antes de ser papa, defende que um padre que, num momento de paixão, viole os votos de celibato pode permanecer sacerdote, mas não se tiver um filho. “A lei natural vem antes dos direitos enquanto padre”, escreveu então Jorge Bergoglio.

No entanto, outro dignitário do Vaticano, monsenhor Andrea Ripa, subsecretário da Congregação para o Clero, salientou que o “pedido” não passa de uma mera formalidade, dado que “é impossível impor” a demissão de um sacerdote. Nada na lei canónica força um padre a abandonar o clero por ter filhos. “Não sendo um crime canónico, não há nenhuma base para a demissão”, afirmou a advogada canónica Laura Sgrò.

Foi esse o caso do pai de Erik Zattoni, o padre Pietro Tosi, que tinha 54 anos em 1982, quando violou a mãe de Zattoni, que tinha 14 anos na altura. A família dela tentou que o padre reconhecesse o filho, mas ele recusou. A família acabou por ser despejada de sua casa, propriedade da paróquia. Em 2010, Zattoni processou Tosi, conseguindo realizar um teste de ADN que reconheceu a sua paternidade. O Vaticano terá advertido o padre e lembrado as suas responsabilidades, mas não o afastou do sacerdócio. Tosi morreu em 2014, ainda como padre. 

A notícia da existência do protocolo relativo aos filhos de sacerdotes surge duas semanas depois de o Papa Francisco reconhecer, pela primeira vez, os abusos sexuais de freiras por padres e bispos católicos. “O maior escândalo neste assunto é esconder a verdade”, considerou o Papa, no encontro de Natal deste ano da Cúria Romana.

No rescaldo dos sucessivos escândalos de abusos que assolaram a Igreja, prepara-se esta semana um encontro de quatro dias, sem precedentes, entre os bispos da Igreja e muitas das vítimas de abusos, prejudicadas pela cultura de secretismo da Igreja – tal como muitos filhos de padres, uma realidade cada vez mais difícil de ignorar, sejam fruto de abusos sexuais ou de relações consensuais.   

“É o próximo escândalo”, diz Vincent Doyle, um psicólogo irlandês, filho de um padre que pensava ser apenas seu padrinho. “Há crianças por todo o lado.” A descoberta levou Doyle a criar um grupo global de apoio para filhos de sacerdotes, o Coping International. Não há estimativas de quantas pessoas estarão na mesma situação, mas o grupo de apoio tem cerca de 50 mil utilizadores em 175 países.