Irene Pimentel. ‘É fundamental termos biografias dos perpetradores das ditaduras ’

A partir da biografia de Barbieri Cardoso, Álvaro Pereira de Carvalho, José Barreto Sacchetti, Casimiro Monteiro e António Rosa Casaco – para Irene Flunser Pimentel, Os Cinco Pilares da PIDE – a historiadora mostra como se ergueu e atuou a Polícia política de Salazar.

Irene Pimentel. ‘É fundamental termos biografias dos perpetradores das ditaduras ’

Quando escreveu, há mais de dez anos, a Biografia de um Inspetor da PIDE – Fernando Gouveia e Partido Comunista (ed.Esfera dos Livros), Irene Flunser Pimentel foi criticada por ‘dar palco’ a um torcionário, naquele que ficou conhecido como o seu ‘livro maldito’. Talvez por isso, na introdução do seu mais recente trabalho Os Cinco Pilares da PIDE – Uma história da Polícia política portuguesa a partir da biografia dos seus mais conhecidos elementos, tenha sentido a necessidade de explicar esta opção. A historiadora continua a não ter dúvidas de que traçar de forma neutra as biografias dos perpetradores não só «não dá imerecida importância ao biografado» como, no caso de um torturador, «contribui para denunciá-lo bem como para revelar os meios violentos que utilizou enquanto elemento de um órgão do poder ditatorial». E vai ao Holocausto – onde as vidas dos membros das SS estão bem documentadas – buscar exemplos. Assim, a partir da vida de cinco elementos da PIDE – Agostinho Barbieri Cardoso, José Barreto Sacchetti, Álvaro Pereira da Cunha, António Rosa Casaco e Casimiro Monteiro – Irene Flunser Pimentel põe caras numa estrutura à qual já dedica larguíssimos anos de estudo. Escolheu homens de diferentes berços, que dentro da PIDE ascenderam também por variados caminhos e que, ao fim e ao cabo, representam tantos outros que pertenceram à Polícia política do regime.

Explica no introito do seu livro, mas queria começar por perguntar-lhe: Porquê reduzir a cinco pilares?

Inicialmente o próprio editor, o Francisco Camacho que ainda estava na Esfera dos Livros, propôs-me que fizesse uma biografia do Casimiro Monteiro. Percebo o interesse, mas sabia não ia ter o suficiente para fazer um livro só com uma biografia dele. Propus-lhe em vez disso arrancar com cinco figuras que eu considerasse centrais, paradigmáticas e inclusive símbolos da própria PIDE, nos seus vários setores, em vez de fazer só sobre o Casimiro Monteiro – se bem que ele também entraria. Destes cinco que escolhi, não havia nenhum que pudesse retirar. E nem sequer fui aos diretores, mas escolhi aquele que se dizia que era o verdadeiro diretor da PIDE – o Barbieri Cardoso. Era ele que mandava nos principais setores a nível superior, quer a nível dos serviços de informação quer mesmo até dos estrangeiros, e sobretudo o relacionamento também com as agências secretas europeias.

O líder oficioso.

Exato. Entretanto, tinha que escolher, houve uma série de chefes durante uma quantidade de anos, pelo menos entre 62 e 74, dos serviços de informação e, por isso, escolhi o Álvaro Pereira de Carvalho, que era o homem da inteligence. E depois o Sacchetti, que era o homem que dava as ordens para os interrogatórios e para as torturas.

E que, de todos, foi o único que não esteve diretamente ligado ao homicídio de Humberto Delgado.

Absolutamente. Isso é que é muito engraçado. Depois temos o Rosa Casaco, que era o verdadeiro tarimbeiro, e aí podia ter escolhido o José Gonçalves ou o Fernando Gouveia, mas achei que o Rosa Casaco era a figura típica porque entrou por baixo, como agente auxiliar.

De todos foi o que veio de uma família mais humilde.

Exato, e foi fazendo a tarimba. E depois o verdadeiro operacional assassino, que se calhar era, ao fim ao cabo, um verdadeiro sociopata, que era o Casimiro Monteiro. Foi então que me apercebi que quatro deles estavam envolvidos no crime de Badajoz, no homicídio de Humberto Delgado e da Arajaryr Campos, sendo que um deles foi o assassino, o outro chefiou a brigada, os outros dois, enfim, prepararam ao fim ao cabo a operação.

Como chegou à formulação ‘pilar’?

Já nem me lembro muito bem. Foi assim uma coisa muito evidente, porque ao fim ao cabo eles são as estruturas humanas nas quais a PIDE se ergueu e atuou. E ao mesmo tempo mostrar como é que estas figuras são criadas pela própria Polícia.

Tem ideia de quantos elementos é que, primeiro a PVDE, e depois a PIDE, tiveram ao longo do seu funcionamento?

Tenho o número exato no livro: no final, seriam à volta de três mil e tal. A maior parte estava nas colónias em guerra. Estavam em Angola, Moçambique e Guiné. É preciso ver que a PIDE e depois a DGS tiveram um importante papel no início da guerra colonial – eram eles quem forneciam as informações sobre os movimentos de libertação às Forças Armadas (FA). Era uma Polícia que era, ao mesmo tempo, Polícia política interna, relativamente ao que se passava na metrópole; serviço de informação das FA nas colónias em guerra e também, enfim, a organização policial que tinha um relacionamento com as agências externas e até de países democráticos, no âmbito da NATO.

Essas informações sobre o funcionamento da estrutura só muito mais tarde, depois do 25 de Abril, é que foram sendo desmontadas. Uma das coisas curiosas que diz no seu livro é que no próprio dia do 25 de Abril a sede da DGS não foi um dos alvos. Porquê?

Há muito mistério ainda sobre isso. O que podemos fazer é ver as várias referências das pessoas que mandavam. Otelo Saraiva de Carvalho, que foi o comandante operacional do 25 de Abril, diz – e isto tem sempre pontas de verdade – que o que foi importante é que um dos elementos que iria tomar a PIDE borregou, como os militares dizem. Por outro lado, ele também desvalorizava a importância da PIDE.

E também conta que uma das coisas que os militares disseram é que eles próprios não tinham informação sobre a estrutura.

Não tinham informação suficiente e acho que há aqui um outro pormenor que normalmente não é dito pelos próprios militares, mas é aquele facto que já referi: a colaboração nos terrenos da guerra colonial entre as FA e a própria PIDE.

Acha que esse ainda é um assunto tabu?

Sim, penso que é um assunto tabu e que está relacionado também com a forma como mais tarde os elementos da PIDE foram tratados. As penas foram muito pequenas, os tribunais militares que os julgaram praticamente absolveram-nos.

Estes cinco homens tinham passados muito diferentes e ascenderam dentro da PIDE de maneiras diversas. Consegue encontrar alguma característica transversal?

A PIDE, como qualquer organização institucional do Estado Novo, era altamente hierarquizada, até do ponto de vista social. Não podemos compreender o Estado Novo sem compreender também o aspeto elitista, por um lado, e a hierarquização social por outro. Ainda ontem o Pacheco Pereira [durante a apresentação do livro, esta terça-feira] lembrou uma coisa que eu também já tinha falado com ele, relativa aos episódios do Ballet Rose, da série que passou na televisão. A dada altura há uma cena num baile entre elementos da alta sociedade portuguesa, aristocratas e ministros, cujas filhas depois dançam com elementos da PIDE. Isso não se passava, nunca se passou.

É ficção na ficção, portanto.

É mesmo ficção e é não entender que a PIDE se encarregava do trabalho sujo. Os militares, a alta burguesia do regime ou a aristocracia não queriam que as suas filhas se casassem com elementos da PIDE. Mas depois dentro da própria PIDE, e por isso é que também escolhi estas figuras, há diferenças grandes. Como era tudo muito elitista, quem tivesse o curso superior, nem que fosse o primeiro ano, ou tivesse já sido oficial das FA, por exemplo, entrava automaticamente como inspetor. Quem tivesse a 4.ª classe, o caso do Rosa Casaco, entrava como agente auxiliar e depois tinha que fazer o percurso. O grosso dos elementos da PIDE, aqueles que estavam mais em contacto com os presos políticos, os que prendiam e torturavam, eram pessoas com instrução primária, quando muito. Na PVDE nem isso era necessário. Só a partir de determinada altura é que se tornou necessário ter pelo menos a 4.ª classe, e depois ter um pouco mais, ou seja, fazer a escola técnica da PIDE.

Portanto em 1933, no início da PVDE, podia entrar qualquer um.

Completamente.

Estes homens – principalmente homens, depois também sabemos que houve mulheres na PIDE – procuravam esta via quando vinham de estratos sociais mais baixos, quase como uma saída profissional, como aconteceu com tantos outros que foram enviados pelas famílias para os seminários?

É muito curioso ver isso. Falei no meu outro livro sobre a origem social, estatística, dos elementos da PIDE. Quase todos aqueles agentes de segunda ou de primeira classe, ou pelo menos muitos deles, vêm do seminário. Estudaram no seminário ou estiveram na tropa, para terem alguma ascensão, mas nos postos mais baixos, como soldados e sargentos, nunca como oficiais. Ir para a PIDE era outra via de facto de subir na vida, ao fim ao cabo. Sendo que a PIDE era também uma via de pertencer à organização que tinha poder sobre os outros.

Mas também havia elementos, como o Barbieri Cardoso, que nasceu numa família aristocrata de Lisboa.

Assim como o Sacchetti. Aliás, quem mandava na PIDE eram militares. Isso foi uma das coisas que o Salazar, quanto a mim, fez com inteligência: primeiro, domesticou as FA, sabia que era dali que vinham os perigos.

E tinha razão.

Teve efetivamente razão, muito mais tarde. No 28 de Maio ele percebeu a importância, sobretudo do Exército. E. para domesticá-los deu alguns cargos no seio do regime às Forças Armadas. Por exemplo, houve muitos coronéis colocados na censura; na PIDE. Também as próprias organizações da juventude, sobretudo a mocidade portuguesa, etc. A Legião Portuguesa também a dada altura foi recheada de militares, porque era uma força militar que entrava em concorrência com as FA. E esses elementos oficiais eram aqueles que dirigiam a PIDE – repare que todos eles eram coronéis, ou majores, ou até capitães.

Sendo estes homens tão diferentes eles depois desenvolviam relações de amizade dentro da estrutura da PIDE, ou viviam na desconfiança dentro da organização?

Desconfiança! Era uma relação de obediência, de servilismo, de rivalidade. Há uma história que conto no livro muito interessante, que se passou até com um amigo meu que foi preso já nos anos 70 no Porto. O Rosa Casaco a dada altura foi lá colocado, pensa-se que por castigo, porque ele tinha estado ligado a um gangue de corrupção e divisas, etc., e terá sido punido. Ele diz que não, mas a verdade é que quando foi para o Porto nunca subiu de inspetor. Ele sentiu sempre isto como uma humilhação e odiava as pessoas que mandavam na PIDE do Porto. E este preso político, o tal meu amigo, estava na tortura do sono e a dada altura foi salvo, entre aspas, pelo Rosa Casaco, porque o Rosa Casaco entrou em concorrência com o [colega da PIDE] que tinha posto o outro [o preso político] naquela tortura.

Mais tarde o Tribunal Territorial Militar há de receber denúncias de elementos da própria PIDE.

Depois do 25 de Abril começaram a denunciar-se uns aos outros, sobretudo os de baixo, que denunciavam os mais acima. O Rosa Casaco, como esteve sempre fora do país e foi o único que escreveu memórias, ajustou contas com todos esses.

Há aqui uma parte em que conta que o Sacchetti foi um dos membros que foi muito denunciado. E ele, que foi um dos últimos a ser libertado [no verão de 1976]…

Ele e o Pereira de Carvalho.

Mas o Sacchetti negou sempre ter estado presente em qualquer interrogatório, e depois temos testemunhas de pessoas a dizer que ele vinha diretamente da boîte Nina [na rua Paiva de Andrade] para as torturas.

Vinha, com o seu perfume. Era o inspetor perfumado. Não era ele que batia, não era ele que estava ali a impedir de dormir, mas era ele que ordenava. Depois ia ver o que se estava a passar, se havia eficácia ou não, se já tinham ‘confessado’.

As penas depois foram muito brandas.

Muito. Tenho outro livro sobre isso, que é o Caso da PIDE/ DGS, sobre justiça política depois do 25 de Abril. Ao mesmo tempo eu tento desfazer aquele mito de que ninguém foi preso, isso não é verdade. Mas quem foi preso não foram os mandantes. Digamos que a opinião pública quase que forçou isso. Com o fim do PREC e com o 25 de Novembro, as coisas alteram-se e eles rapidamente são libertados e aguardam o julgamento em liberdade. A Justiça em Portugal demora muito tempo, já na altura assim era. Quando é o momento de serem julgados pelo Tribunal Militar saem praticamente no próprio dia.

Consideraram que muitos já tinham cumprido a pena.

Exato, são punidos com a pena que tinham já cumprido em prisão preventiva. E gozaram de atenuantes e outras coisas que tais. Houve só algumas exceções que foram aqueles que tinham ostensivamente morto pessoas, por exemplo, no caso Dias Coelho. Ou aqueles mais conhecidos, como o Mortágua ou o Tinoco, que também falo aí, evidentemente, mas que não escolhi como pilares.

Julgo que todas as gerações já ouviram falar muito das torturas, conseguem perceber o que se passou, mas relativamente aos assassínios, para mim foi quase uma surpresa ver esta palavra tantas vezes repetida.

Mesmo assim, na chamada metrópole – coisa que não se passou nas colónias, porque houve assassinatos de pessoas que nem sabemos hoje em dia – não houve assim tantos. Sobretudo a partir de 1945: até 45 eles estavam-se nas tintas. E não houve por uma razão muito simples: o salazarismo conseguiu sobreviver à queda dos nazis e dos fascistas e estava ao mesmo tempo na Europa, porque havia sempre aquela maneira de mascarar. E conseguiu efetivamente fazê-lo, porque muitos, e mesmo teóricos políticos e sociólogos, ainda hoje dizem que era uma ditadura branda, que não teve muitas mortes, que as penas de prisão não eram excessivamente grandes – isto porque não contabilizavam as medidas de segurança. Salazar bem sabia o que estava a fazer, e que resumia naquela frase: «O que parece é». Havia sempre uma aparência de humanidade. Repare que a típica figura salazarista é o Sacchetti, que já antes, mas mesmo depois do 25 de Abril, quando é interrogado, diz sempre: «Mas eu fui moralmente educado nos valores de que não se vai provocar violência em cima de outros seres humanos». Está sempre a repetir essa fórmula.

Chama-lhe hipocrisia.

Chamo. Era a maneira como aquele regime estava montado. Leio muito sobre os refugiados da II Guerra Mundial e a palavra humanidade aparece constantemente. Salazar tem aquela célebre frase de dizer que há alguns aspetos parecidos com o fascismo italiano, que há a autoridade, a que ele não chamava de autoritarismo, e com o nazismo – até do qual ele se diferenciava mais –, mas depois realça que o nosso regime se regulava pela moral cristã que não permite certos excessos, etc. Havia sempre aquela coisa do esconder, do não aparecer. Ele diz mesmo: a nossa Polícia não precisa de aparecer.

Parece que me está a descrever uma sociedade de homens que vivem duas vidas, uma delas com máscaras.

Absolutamente. Isso também é muito típico das Polícias políticas todas, não só da nossa. Ao mesmo tempo estes torturadores nas suas famílias, no espaço social que frequentavam, eram pessoas vulgares, normais.

Talvez até de trato afável, sabemos lá.

Sabemos! Há descrições de um elemento que eram bombeiros, outro que tratava muito bem a sua mulher que era paralítica, uma série de relatos assim. E se for ver no Holocausto hoje sabemos que havia elementos das SS, que viviam até dentro dos campos de concentração – em Auschwitz ao lado das câmaras de gás, onde todos os dias eram mortos milhares de seres humanos – e eles à noite estavam com as famílias a ler Goethe, a ouvir Schubert e Mozart.

Teve algum contacto com os descendentes destes homens?

Não, avisei logo no início que esse seria o meu grande problema. Já tinha feito a minha tese de doutoramento sobre a PIDE, já tinha tentado depois com o Jacinto Godinho, com quem colaborei numa série documental. Quando tentámos, quer o realizador quer eu própria, ninguém queria falar. Só há um que fala sempre, que é o Óscar Cardoso. Ainda há pouco tempo apareceu no Correio da Manhã a dizer que nunca tinha visto ninguém a torturar, quando ele próprio diz noutros testemunhos, que pus aqui no livro: «Não é que a gente torturasse, de vez em quando havia uns abanões, que era a única maneira de eles dizerem onde é que puseram a bomba». Os célebres safanões do Salazar.

Esse discurso continua hoje.

Continua. Portanto não podia contar com os testemunhos de descendentes, nem os deles próprios, obviamente, que já morreram. Também cuidei disso, porque acho que a História não deve falar muito de pessoas vivas. A História é sobre um processo que terminou. Só pude contar com os depoimentos que eles próprios deram em entrevistas ou que publicaram. Os jornais aí são sempre fontes importantes. Depois fui aos arquivos da PIDE, que são fundamentais, assim com os da [Comissão] da Extinção da PIDE. Não tive acesso a todos os documentos, mas tive a alguns.

Como é para si conseguir, como historiadora, uma distância do seu objeto quando se trata de uma época que viveu – e tão intensamente?

Eu e outras pessoas da minha geração, ativas politicamente, sempre tivemos uma curiosidade enorme: o que era verdadeiramente a PIDE? Tínhamos os nossos mitos, e tínhamos sobretudo um medo muito grande de ser presos.

Lembra-se de algum mito mirabolante?

Estávamos muito informados por outros sobre o que se passava nos interrogatórios, como era a tortura do sono, a estátua, o espancamento. Mas acreditávamos que a PIDE perseguia toda a gente, o que não era verdade. A PIDE existia para perseguir os ativos politicamente. Mas tinha um aspeto muito importante para a população em geral: dar a entender que estava por todo o lado, e esse medo tinha uma eficácia… E que tinham informadores por todo o lado, que os cafés estavam repletos deles.

E não era verdade?

Tinham muitos informadores, mas estavam espalhados em sítios chave. Outro mito: que escutavam todos os telefones. Não é verdade, a capacidade de escuta era até bastante reduzida. Muitas vezes era ao acaso, ou eram sempre os mesmos a ser escutados. Também não é verdade que abriam toda a correspondência: mas havia listas de pessoas cuja correspondência abriam. É a Polícia diretamente ligada a eliminar qualquer tipo de oposição organizada, espalhando o medo e sobretudo a passividade. Isso acho que conseguiram: todas as pessoas sabiam que eles existiam.

Nas terras pequenas, toda a gente sabia até quem era quem.

Há um aspeto que nunca se saberá: quem eram os informadores e quantos eram. Os registos foram queimados e ainda hoje na Torre do Tombo não se pode saber – se eu pedir determinado processo está apagado o nome. A não ser que eles se esqueçam de os rasurar, já apanhei uns desses (risos).

Temos cinco biografias aqui: é um livro super maldito.

(risos) Acho que não. Temos cinco porque acho que se deve fazer. Ainda ontem o Pacheco Pereira me disse que eu tive a necessidade de me explicar muito na introdução – a que escrevi inicialmente até era muito maior, mas teve que ser cortada. Até recorri à historiografia do Holocausto, que analisa muito os chamados perpetradores, e que é fundamental. É fundamental termos biografias do Salazar, do Hitler, e também destes homens, normais, vulgares, que estiveram em contacto com outros seres humanos e que praticaram o que praticaram.

Não podemos deixar de falar do homicídio de Humberto Delgado, que revisitou aqui, até porque quatro dos biografados estão ligados ao crime.

E sobretudo porque há aspetos do julgamento propriamente dito, já nos anos 80, e da sentença e a forma como essa sentença é super criticada quer por historiadores quer por jornalistas quer por, evidentemente, elementos da família Delgado, sendo que o neto (Frederico Delgado) até fez uma biografia e revisitou isso.

Traz algum dado novo sobre o crime em si ou é o nível de detalhe das biografias que permite fazer outras leituras?

O que tento é trazer todos os dados que existem, assim como as principais versões e interpretações, não dando importância a outras porque há também aqui muitos mitos. Tento trazer também o papel do Salazar, que nós não conhecemos. Não há nenhuma frase dele dizendo ‘matem o Humberto Delgado’. Agora o que posso dizer é que a PIDE era a Polícia do ditador, não era um Estado dentro do Estado. Ele podia não saber tudo na antevéspera ou na véspera, mas sabia.

Continuam a haver várias versões sobre o próprio modus operandi da morte de Humberto Delgado. O neto sugere que o mais plausível terá sido espancamento.

A grande novidade foi essa dada pelo próprio neto, que acho que é interessante. Mas, por outro lado, também há falha de prova aí. E a própria Arajaryr não se sabe quem a matou.

Outra figura que pouco aparece ainda na historiografia.

Pouco aparece, é verdade, é a chamada secretária, e que o foi, mas no final era a companheira de Humberto Delgado. Ela tem que ter o seu lugar também na História, porque diz-se sempre: o Humberto Delgado e a sua secretária, ao invés de Humberto Delgado e Arajaryr Campos. Há quem diga que foi o Tienza o culpado do homicídio, por exemplo. No julgamento o Casimiro Monteiro foi considerado o assassino dos dois.

Nesse julgamento chega-se à conclusão que aqueles homens não tinham nenhum distúrbio de personalidade.

Isso está na própria sentença, e achei muito importante essa citação. A partir do momento em que se começou a estudar os carrascos e a fazer a sua biografia – mesmo os que mataram uma quantidade de judeus a tiro a céu aberto na União Soviética – percebeu-se que esses homens não eram monstros. Tinham uma educação normalíssima, igual à de todos os outros, então como é que eles conseguiram cometer esses crimes? Acho muito interessante também isso, porque aí na própria sentença diz uma coisa que eu também considero. Seria muito mais fácil nós dizermos: é uma cambada de monstros.

Catalogá-los como sociopatas.

Sociopatas, psicopatas, por aí fora. Mas não! Era gente vulgar que em determinadas circunstâncias, num determinado regime e numa determinada instituição,  fizeram coisas que um ser humano, em princípio, não é educado para fazer. Apesar de tudo, na escola, aprende-se que não se deve denunciar – ou fazer queixinhas –, não se deve bater no colega. E de repente temos regimes ditatoriais, que podemos vir a ter outra vez, em que temos essas polícias, que têm redes de informadores, que dividem o próprio povo entre informadores e informados e que transformam essa realidade em algo muito normal.

Quando disse que podemos vir a ter de novo ditaduras é uma afirmação baseada na História ou convicção sua?

É baseada no que vejo atualmente. Tento até dizer sempre que a História não se repete, porque os contextos são diferentes. Se agora tivermos ditaduras outra vez, e é para lá que se caminha em certos sítios…

Quer precisar?

Por exemplo, o Brasil do Bolsonaro. Claramente quando se diz ‘eu vou retirar da função pública tudo o que é do PT, comunista e socialista’, o que é isto? É já uma coisa pré… Aliás, o Hilter fez o mesmo. Ainda por cima a História serve a estes atuais [governantes] para fazer determinadas coisas que já foram feitas, porque eles também a leem.

Usam-na de uma maneira aspiracional, com um sentido absolutamente negativo, neste caso.

Pois com certeza. Eliminar pessoas da função pública porque não concordam comigo, isto numa democracia… E estas pessoas que o fazem, ainda por cima, são eleitas democraticamente.

E o discurso das pessoas nas redes sociais, dos que elegem, coaduna-se em muitos pontos com o que descreve.

É um discurso já formatado para aceitar a pena de morte, por aí. Não tenho muitas dúvidas, por exemplo, que se houvesse referendos sobre a reintrodução da pena de morte, o sim poderia ganhar.

No Brasil?

No Brasil evidentemente, mas mesmo em Portugal, onde mesmo com a baixa taxa de criminalidade há pessoas de idade a terem medo de sair à rua. Agora há uma coisa: qualquer ditadura que surja, com os meios atuais que há, será sempre muito pior que a PIDE ou a própria Gestapo.

E a escalada dos patamares será também muito mais rápida.

Veja só, através disto [agarra o telemóvel] as pessoas que quiserem podem saber o que estamos a falar neste momento. A tecnologia tem aspetos muito benéficos e depois tem outros que, oxalá, não sejam usados.

Queria falar-lhe da entrevista que  Rosa Casaco deu a José Pedro Castanheira, publicada no Expresso, em 1998…

Vale muito a pena ler. A própria entrevista foi um facto político.

A história de ele entrar e sair sorrateiramente do país, de andar a tirar fotos em frente à Torre de Belém, há ali um certo nível de surrealismo. O que queria saber era, se depois da sua investigação, se acha que ele foi sincero na maioria das coisas que disse ou se aproveitou o momento para maquilhar as suas próprias ações?

É difícil dizer porque ele próprio também depois continua a falar sobre o caso Delgado. Nos seus últimos livros de memórias (morre em 2006, aos 91 anos) espraia-se sobre o caso de forma um bocadinho diferente, mas não totalmente, do que diz ali. Claro que o que ele diz é que a brigada matou, que não ia matar, que só ia raptá-lo, mas que depois as coisas correram mal. Mas chega a dizer nas suas memórias que o Casimiro Monteiro, e provavelmente o Tienza, levavam outras ordens, que ele não sabe de quem. E portanto o mistério vai continuar e vai continuar sempre. É como o mistério do assassinato do Kennedy, acho que nunca se vai saber. Inclino-me mais para uma convicção.

Quer dizer qual?

Não quero dizer porque não é completamente provada. O que sei é que havia uma ditadura, que tinha uma Polícia que lhe obedecia, portanto Salazar estava informado que ia haver uma ação de neutralização. Não se sabe quem deu as ordens, não se sabe se havia duas equipas com ordens diferentes. O que se sabe é que foram assassinados, que os responsáveis levavam cal, que enterraram os corpos de uma forma muito pouco profissional para que fossem encontrados e que tiveram o apoio – ou pelo menos a cumplicidade – da Polícia política espanhola.

Depois do 25 de Abril cada um destes pilares vai ter um destino muito diferente. Uns são exilados, outros presos.

Destes cinco os únicos que são presos são o Pereira de Carvalho e o Sacchetti. Uma pequena nuance relativamente ao Pereira de Carvalho: ele não é logo preso.  Continua a ir à António Maria Cardoso e a Caxias a colaborar com as FA e com a Comissão de Extinção da PIDE. A dada altura a própria comissão diz: mas afinal este homem tem que estar preso!

E o Sacchetti?

Foi preso por uma razão muito simples: era muito conhecido por todos os presos políticos. Dava-se ao luxo de falar com os familiares dos presos, sobretudo pessoas de uma classe social mais alta. Era um gentleman, beijava as mãos das mulheres dos homens que estavam a ser torturados nesse momento!

Para se defender, diz que as acusações não passam de injúrias do PCP – ‘o perseguido do PCP’, como lhe chama.

Acho muita graça a esse discurso: claro que ele tinha que ser ‘perseguido’ pelo PCP, como o Gouveia e outros, o Tinoco e o Mortágua. O Pereira de Carvalho conseguiu sempre ficar ali no meio, muita gente nem sabia quem ele era. O Sacchetti não, era a besta. E o Barbieri era aquela figura intocável. Acabam por não ser julgados mas são os últimos a sair da cadeia, ainda estão dois ou três anos. Os outros três nunca são presos. O Rosa Casaco porque consegue fugir do Porto e exila-se em vários países – Espanha, Brasil, Canárias, etc. – e pelos vistos passava a vida a entrar e a sair de Portugal (risos). O Barbieri estava em França, sabe do 25 de Abril pelo chefe dos serviços secretos franceses, fica lá durante um tempo e depois exila-se em Espanha onde forma o Exército de Libertação de Portugal (ELP). É uma das figuras principais do ELP, o filho dele aqui em Portugal, um militar, é um dos ativos. E pelo menos no 11 de Março o Barbieri atua. Volta depois mais tarde para Portugal com um acordo que nós não conhecemos. Deveria ser julgado, acaba por não ser.

E o Casimiro Monteiro?

Estava em Moçambique. Sabemos que, depois do Delgado, ainda matou também o [Eduardo] Mondlane. Este livro interessou muitíssimo à embaixada de Moçambique. Não dou nenhuma informação que não se soubesse, até me baseio em moçambicanos que estiveram na comissão de inquérito, mas penso que facto de se estar a falar disto em Portugal está a ter alguma repercussão. Estive numa sessão com moçambicanos e perguntaram-me se eu achava que Portugal devia pedir desculpa. E eu disse: ‘Bom, o que tem que fazer é a História’. A nossa história em comum, falar dos crimes cometidos. Também houve massacres. E isso está tudo para ser investigado.

Conta aqui que o filho de Casimiro Monteiro disse numa entrevista que o pai disparou contra Humberto Delgado em legítima defesa.

Pois foi. Mas usar a legitima defesa em relação ao Mondlane é um bocado difícil… (risos)

Com um livro armadilhado não há grande dúvida!

E agora percebe-se o percurso do livro – está tudo online. O online é fabuloso hoje em dia – tem que se ter cuidado em manuseá-lo, cotejar com outras fontes, mas é fabuloso. Não sei como é que se vai fazer História com tanta informação daqui a uns anos. E tanta fake informação. 

Qual é o próximo livro que tem na calha?

Está até já bastante avançado: é sobre o Holocausto e sobre Portugal e o Holocausto. Será um livro tipo manual, baseado em investigação que já fiz, muito dirigido aos professores e estudantes de História.

Como é o seu processo de trabalho?

É comum, normalmente trabalho oito horas por dia. Quando estou em fase de investigação trabalho nos arquivos, e é completamente diferente. Depois na fase da escrita demoro bastante tempo, porque não escrevo de uma vez. Leio muitas vezes, corrijo muitas vezes. Essa parte faço em casa. E depois vou muito a cafés para ver pessoas.