O génio, o gentleman e os loucos

Nas últimas décadas, o génio de Leonardo da Vinci tem atraído toda a espécie de fantasias e devaneios delirantes sob a forma de livro impresso. Aliados às reproduções baratas da Mona Lisa e da Última Ceia, esses livros contaminaram e deformaram, como uma peste, a nossa ideia do grande artista do Renascimento. Para nos devolver…

Nas últimas décadas, o génio de Leonardo da Vinci tem atraído toda a espécie de fantasias e devaneios delirantes sob a forma de livro impresso. Aliados às reproduções baratas da Mona Lisa e da Última Ceia, esses livros contaminaram e deformaram, como uma peste, a nossa ideia do grande artista do Renascimento.

Para nos devolver intacto o fascínio dessa personalidade, nada como o estudo que Kenneth Clark lhe dedicou em 1939. Quem o viu a apresentar a excelente série Civilização, da BBC, conhecerá um pouco da erudição, dos dotes pedagógicos e da eloquência deste verdadeiro gentleman da história da arte. Nascido em Londres em 1903 no seio de uma rica família escocesa, a sua ascensão foi meteórica. Ainda antes de fazer trinta anos, Clark já conquistara tal notoriedade que foi nomeado para o prestigioso cargo de diretor de National Gallery de Londres. «Tornou-se uma celebridade instantânea», recorda Martin Kemp na introdução ao seu estudo sobre Leonardo da Vinci. «Entrou vigorosamente na alta sociedade londrina e era muito requisitado para palestras. Felizmente para nós, os seus compromissos como orador incluíram uma série de palestras sobre Leonardo». Foi delas que nasceu este livro.

Ao contrário de alguns dos seus pares, que parecem esforçar-se para transformar a história da arte numa disciplina aborrecida e cheia de pormenores desnecessários, Kenneth Clark soube pintar um retrato vivo do génio do Renascimento sem comprometer o rigor dos factos. As suas descrições de pinturas ou desenhos não só se caracterizam pela nitidez como espevitam a imaginação do leitor.

Até quando fala de um retrato tão banalizado quanto a Mona Lisa, o livro de Clark consegue ser altamente estimulante. Depois de reproduzir algumas palavras de Giorgio Vasari, um artista e biógrafo de artistas do século XVI, Clark comenta: «Alguém que tenha tido o privilégio de ver a Mona Lisa retirada para fora do poço profundo em que se encontra pendurada, e trazida para a luz, recordará a maravilhosa transformação que toma lugar. A presença que se ergue perante nós, tão maior e mais majestosa do que tínhamos imaginado, já não é a de um mergulhador em águas profundas. À luz do dia, recupera algo da vida ainda quente que Vasari admirava, e tinge-lhe as bochechas e os lábios, e conseguimos perceber por que ele a via como sendo acima de tudo uma obra-prima do naturalismo».

Hoje, o problema já não será a Mona Lisa estar num «poço profundo», mas os magotes de turistas, a distância imposta por uma guarda e a caixa de vidro à prova de bala que se encontra a protegê-la. Bem precisa – já foi atacada à pedrada, com ácido, com spray e até com uma caneca. Lá está: quinhentos anos depois da sua morte (a 2 de maio de 1519), o génio de Leonardo continua a atrair as multidões e os loucos.