‘Puxávamos um pelo outro sem dó nem piedade’

Sequeira Costa, um dos grandes pianistas portugueses do século XX, morreu esta quinta-feira aos 89 anos. O seu discípulo Artur Pizarro recorda o tempo em que estudou com ele e os despiques entre ambos.

Após uma doença que ensombrou os últimos anos de vida, Sequeira Costa faleceu esta quinta-feira nos Estados Unidos, onde residia e lecionava desde 1976. Tinha 89 anos.

Nascido em Luanda em 1930, já em Lisboa foi aluno de Campos Coelho e discípulo de Vianna da Motta, que por sua vez tinha estudado com o grande compositor e pianista húngaro Franz Liszt. Venceu o Grande Prémio de Paris, no Concurso Internacional Marguerite Long, em 1951 e em 1958 integrou o júri do Concurso Internacional Tchaikovsky, em Moscovo, a convite do próprio Dimitri Chostakovitch. Cedo atingiu um estatuto internacional como intérprete, tocando nos principais palcos mundiais. «Muitas gravações comerciais suas continuam a ser uma referência», nota Artur Pizarro, o pianista que mais anos estudou com Sequeira Costa. «Muitas dos concertos que deu nas grandes salas da Europa, seja no Rodolfinum de Praga, seja Salle Gaveau, em Paris, são lembrados ainda com muito carinho. Foi uma figura verdadeiramente internacional. Ao nível de um Vianna da Motta ou de uma Guilhermina Suggia. Foi talvez o terceiro músico português, seguido muito rapidamente por Maria João Pires, a conseguir realmente rasgar as fronteiras». 

De facto, Sequeira Costa não apenas fez grande parte da sua carreira nos palcos internacionais como, dada a sua insatisfação com as condições do ensino da música em Portugal, optaria por lecionar nos Estados Unidos, acabando até por obter dupla nacionalidade.

‘Tinha noção do limite’
Artur Pizarro começou a estudar com Sequeira Costa quando tinha apenas cinco anos e, com algumas interrupções, continuou com o mestre até aos 21 – 14 anos no total. «Trabalhámos desde raiz até ao ponto final: ele acompanhou-me desde o meu primeiro Czerny, com os estudos para os cinco dedos, até preparar-me para os concursos internacionais. Tive a sorte de ter um mestre que não só podia trabalhar comigo num estúdio – e aí fazíamos verdadeiramente um trabalho de laboratório, porque analisávamos todos os passos de todos os ângulos -, como podia mostrar, como poucos podem no planeta, o processo de levar a teoria da classe até à prática do palco. Saía de uma aula onde ele me dava uma balada de Chopin e daí a seis horas via-o tocá-la em recital num dos vários palcos por esse mundo fora».

Sequeira Costa era um professor exigente, recorda Pizarro, mas não demasiado. «Ele tinha noção do limite. Sabia até onde podia empurrar, e que uma vez que o elástico esticasse, esticasse, e quebrasse, ia ser negativo. Mas também não era daqueles professores que dizem ‘tens muito jeitinho, és muito musical, estiveste muito bem’. Muitas vezes lembro-me de ele dizer: ‘O que está bem está bem, vamos é ao que não está bem, não vamos perder tempo’».

Paralelamente à relação mestre-discípulo, Sequeira Costa e Artur Pizarro mantinham uma ligação de ordem familiar. «Também foi meu padrasto. Essa relação era sempre muito mais complicada mas durante esse período de estudos havia compartimentos estanques. Havia a nossa relação pessoal, humana, que nunca foi famosa, devo confessar, mas isso não afetava o resto. Protegíamos a relação que tínhamos de mestre e discípulo, porque sabíamos que era uma coisa muito especial que tinha de ser protegida».

De facto, Sequeira Costa via em Pizarro o seu herdeiro musical. «Pelo menos foi o que disse em várias entrevistas em várias fases da vida. Ele queria que eu continuasse mais tarde a obra dele, uma coisa que tenciono fazer não só no palco mas em pedagogia. E fá-lo-ei com muita honra, tentarei continuar uma escola que remonta a várias gerações».

‘Sabíamos ler os pensamentos um do outro’
Além da técnica pianística, com o mestre Artur Pizarro aprendeu sobretudo a ter «respeito pela arte, respeito pela música, e disciplina para a merecer. Deu-me método de trabalho. Deu-me as ferramentas, incutiu em mim a disciplina e o processo para conseguir ser um intérprete com a qualidade que ele achava que eu poderia ser e que mereceria ser e que teria de ser».

Ao longo do tempo, mesmo muito depois de os respetivos caminhos terem divergido, continuaram a acompanhar as respetivas carreiras. Quando podiam assistiam aos concertos um do outro. «Era difícil, mas cruzávamo-nos, havia vezes em que nos encontrávamos em Londres, em Paris ou no Japão. Sempre que podíamos, se alguém estava na cidade em que o outro estava a tocar, com certeza».

Sequeira Costa era parco nos comentários. «Não havia necessidade. Eu sabia perfeitamente o que ele estava a pensar. Foram muitos anos juntos. Já sabíamos ler os pensamentos um do outro sem ter que abrir a boca. Era um pouco o velho casal que está no hotel a tomar o pequeno-almoço e já não precisam de falar um com o outro».

De resto, havia uma competição mais ou menos saudável entre os dois. «A tensão era um dos ingredientes básicos da relação. Se não havia tensão não havia interesse. Quase que a competição passou a ser necessária à relação. E puxávamos imenso um pelo outro. Sem dó nem piedade».