Caxemira. Refém da política nuclear

A vingança indiana contra o atentado de Pulwama desencadeou uma escalada militar. Tensão com o paquistão está a atingir níveis intoleráveis

Os residentes de Caxemira já esperavam estar sob o fogo-cruzado desde que um bombista suicida avançou com um carro armadilhado contra um comboio de veículos da polícia paramilitar indiana, na autoestrada de Pulwama, a 14 de fevereiro. O atentado causou a morte de 40 paramilitares e foi reivindicado pelo grupo extremista islâmico Jaish-e-Mohammad (Exército de Maomé), sediado no Paquistão, desencadeando a sede de vingança dos indianos.

«Estamos zangados com o que aconteceu em Pulwama», afirmou Surjeet Kumar, chefe de uma aldeia na Caxemira indiana, em declarações à France Presse. Kumar garante querer «que a Índia vingue as mortes, mas deve também pensar em nós».

Desde esta terça-feira, quando a Força Aérea indiana bombardeou alegados campos de treino do Jaish-e-Mohammad em território paquistanês, na zona fronteiriça, têm-se sucedido escaramuças entre os exércitos de ambos os países, assim como pesadas barragens de artilharia. Os confrontos forçaram as autoridades indianas a pedir aos civis que desliguem as luzes à noite, para não serem alvo da artilharia. Todas as escolas e mercados do lado paquistanês foram encerrados e as populações aconselhadas a não sair à rua.

Surjeet Kumar estava em casa com a sua família quando o edifício foi atingindo por nove tiros de morteiros de 120 mm, esmagando paredes, janelas e móveis. «Estamos muito assustados, estão a disparar armas pesadas, não apenas balas», explicou o aldeão, que diz ter visto caças paquistaneses a voar sobre a sua aldeia.

A facilidade com que os caças indianos penetraram no espaço aéreo do Paquistão para bombardear Bakalot, Muzaffarabad e Chakothi, colocou em causa a capacidade e eficiência dos sistemas de defesa paquistaneses. O que levou a uma retaliação e a um combate aéreo, onde foi abatido um caça paquistanês e um indiano, tendo um piloto indiano, o comandante Abhinandan Varthaman, sido capturado por forças paquistanesas.

«Esta não foi uma retaliação no verdadeiro sentido, serviu apenas para mostrar que o Paquistão tem essa capacidade», esclareceu um comunicado do ministério dos Negócios Estrangeiros, que acrescentou: «Queremos ser responsáveis, não queremos uma escalada, não queremos uma guerra».

Retaliação nuclear

Os paquistaneses «estão reféns da sua política», explica Adérito Vicente, investigador de Relações Internacionais e Desnuclearização no Instituto Universitário Europeu, ao SOL. A doutrina nuclear do Paquistão exige a utilização de «armas nucleares táticas» em caso de «uma invasão militar convencional» através da fronteira. Nesse cenário, o Paquistão ficaria sujeito à retaliação nuclear da Índia contra os «postos de comando» em Islamabade, com armas nucleares «no mínimo dez vezes mais» potentes que a bomba de Hiroxima. «O que, aliás, faz parte da sua postura nuclear».

Numa tentativa de diminuir a tensão, o primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan, anunciou a libertação do piloto indiano capturado, como «gesto de paz». Khan pediu ao executivo indiano para iniciar negociações, garantindo estar «pronto para cooperar» e alertando para o perigo de um conflito na região: «Dadas as armas que temos, não podemos dar-nos ao luxo de cometer erros de cálculo».

Abhinandan foi libertado ontem na fronteira, e recebido como um herói por uma multidão de indianos, que celebraram cantando e acenando bandeiras do seu país. 

O anúncio da abertura diplomática paquistanesa foi recebido com alívio de ambos os lados da fronteira. «Nós quase tivemos de fugir para uma zona segura, longe de casa», comentou Muhammad Imran, residente da aldeia fronteiriça de Teetwal, ao jornal Greater Kashmir. 

No entanto, a reação do governo indiano do nacionalista hindu Narendra Modi não ajudou a acalmar a tensão. Modi manteve um tom belicista, insistindo que todos os seus «compatriotas» se manteriam firmes contra os «planos maldosos» do Paquistão, declarando que o propósito do país vizinho é «impedir o crescimento» da Índia.

Disputa de recursos

A disputa de Caxemira entre a Índia e o Paquistão, que já dura desde 1947 e resultou em três guerras – 1947 1965 e 1999 – pode ser relacionada com o facto de esta ser «uma região rica a nível de matérias-primas», explica Adérito Vicente, referindo a importância estratégica dos recursos hídricos de Caxemira, a que se juntam os «recursos florestais e algumas pedras preciosas encontradas na região».

Além disso, dado o «excesso de população» no subcontinente indiano, e sendo Caxemira parcamente populada, com seis milhões de pessoas no lado paquistanês e sete milhões no lado indiano, tem muito espaço e «terrenos muito férteis para agricultura», o que faz dela «um chamariz para ambos os países». E, «do ponto de vista nacionalista e religioso», há que ter em conta as várias religiões presentes na região, «que até consideram algumas partes da Caxemira sagrada».

Apesar da reação belicosa do governo indiano, a libertação parece ter acalmado a situação por agora. O Paquistão já anunciou que reabrirá o seu espaço aéreo esta segunda-feira, após o encerramento da semana passada, que perturbou milhares de voos de todo o mundo. Passam pelo Paquistão as principais rotas comerciais entre a Europa e a Ásia, que tiveram de fazer percursos muito mais longos (ver infografia) ou sofrer desvios através da China.

Esta quinta-feira a Thai Airways cancelou todos os voos de Londres, Munique, Paris, Bruxelas, Milão, Viena, Estocolmo, Zurique, Copenhaga e Oslo para Banguecoque, um dos destinos turísticos mais procurados pelos europeus.

O analista de aviação Geoffrey Thomas, em declarações à CNN, afirmou que o espaço aéreo paquistanês é «um corredor muito importante, e esta foi uma disrupção muito séria, dado que todo o tráfego foi desviado muito para sul, através da península arábica». E acrescentava: «Não se podemos ir mais para norte porque então estamos a sobrevoar os Himalaias – e isso não se pode fazer. Estamos presos neste corredor».