A ‘censura cirúrgica’…

Foi por um triz que vingou, em sede de comissão parlamentar, a iniciativa do PSD de promover a audição do atual economista-chefe da OCDE e ex-ministro, Álvaro Santos Pereira, que coordenou o relatório anual daquela organização sobre Portugal, que tantos engulhos causou ao Governo.  Não fora essa proposta social-democrata para debater o relatório «na parte…

Foi por um triz que vingou, em sede de comissão parlamentar, a iniciativa do PSD de promover a audição do atual economista-chefe da OCDE e ex-ministro, Álvaro Santos Pereira, que coordenou o relatório anual daquela organização sobre Portugal, que tantos engulhos causou ao Governo. 

Não fora essa proposta social-democrata para debater o relatório «na parte que se refere à reforma da justiça e à corrupção», e o assunto teria ‘morrido à nascença’, arrumado na agenda política e mediática. 

Vivem-se tempos curiosos, férteis em ensinamentos mesmo para os mais distraídos. Os atos ‘cirúrgicos’ estão na ordem do dia, como se tem visto desde as greves dos enfermeiros – as quais não se diferenciam, aliás, do modelo seguido noutras paralisações igualmente ‘cirúrgicas’, nos transportes, na estiva ou na escola pública. 

A experiência conheceu agora um novo impulso com a novidade da ‘censura cirúrgica’ introduzida no estudo da OCDE, cuja versão final deixou ‘no tinteiro’ várias passagens da versão preliminar, conhecida graças a uma ‘fuga de informação’. 

Enquanto José Sócrates se passeia pela pacatez da Ericeira, longe do bulício da capital, desapareceram num ápice, ‘cirurgicamente’, do relatório da OCDE, as alusões à Operação Marquês da qual ele é o principal protagonista. E foram ainda muito suavizadas as preocupações relativas ao estado da Justiça, aos órgãos de investigação criminal e à corrupção em Portugal, que constavam da proposta original.

Expurgado o relatório das ‘impurezas’ que apoquentavam António Costa, o secretário-geral da OCDE, Ángel Gurría, sentiu-se à vontade para voar até Lisboa e intervir numa conferência de Imprensa, deixando vazia a cadeira onde deveria sentar-se Álvaro Santos Pereira, ‘castigado’ por não ter relativizado um fenómeno que progride, há anos, em Portugal.

Pior: Gurría fez uma triste figura ao assumir a ausência de Santos Pereira como uma decisão pessoal, para que o encontro não se transformasse numa conferência «sobre Álvaro em vez de sobre Portugal». Um absurdo. 

Consumados os cortes ‘cirúrgicos’, a OCDE recuou num capítulo importante do relatório e cedeu aos protestos do Governo, com a desfaçatez de ter riscado Santos Pereira da apresentação do trabalho. 

Foi demasiado óbvia a tentativa de esbater a corrupção, para conforto de um Governo onde pontificam vários ex-colaboradores de Sócrates. 

Claro que vai uma grande diferença entre o ‘ato de contrição’ envergonhado do PS, em vésperas de Congresso, para consumo interno, e ser a OCDE a apontar o dedo às fraquezas da oligarquia. 

Há muito que se tinha percebido que Álvaro Santos Pereira era persona non grata para as hostes socialistas. Ainda em meados do ano passado, ele escrevera que «sem um combate sério contra a corrupção não voltará a haver confiança no Estado e na política».

Algo intolerável para ser repetido agora, em vésperas de eleições, sob a forma de um estudo da responsabilidade de uma organização internacional tida por independente. 

Para a história ficará um «leak desafortunado» (fuga de informação), como a classificou Gurría, ao enfatizar que as versões preliminares fazem parte dos procedimentos normais da instituição. 

O que será menos normal é um Governo tentar tapar o sol com a peneira e uma organização como a OCDE curvar-se diante das conveniências políticas do ‘poder do dia’ de um Estado membro, remendando o estudo ‘à vontade do freguês’. 

O PS e António Costa tinham toda a vantagem em exorcizar os ‘demónios’ de um período negro da história do partido envolvendo um ex-primeiro-ministro e ex-ministros saídos das suas fileiras, a contas com a Justiça. 

A corrupção em Portugal começa a ter uma crónica complexa e ramificada, abrangendo políticos, empresários e, até, militares e agentes da Justiça e das forças de segurança. Há quem a considere, por isso, já perigosamente endémica. 

A lentidão das investigações, por alegada falta de meios – comum também aos tribunais -, e o excesso de garantismo processual – que faz a fortuna de advogados de elite -, já encoraja arguidos do gabarito de Ricardo Salgado a sacudir a água do capote em público, como se a culpa do colapso do BES e outras malfeitorias de que é suspeito não lhe dissessem respeito. É preciso topete. 

A versão preliminar do relatório da OCDE ‘atreveu-se’ a incluir uma análise sobre os labirintos de um Regime brando com a corrupção, o que ‘desapontou’ o ministro Siza Vieira, que chegou a dizer no Parlamento que tal poderia ser um «sinal externo muito negativo». Com os ‘arranjos’ feitos por medida, pode dormir descansado. O desassossego tem outros nomes…