Argélia. Milhares saiem à rua contra recandidatura de Bouteflika

“Como pessoa, ele [Bouteflika] quer morrer no poder. É o seu sonho”, disse Farah Mokrani ao i

Dezenas de milhares de argelinos saíram ontem à rua para exigirem o afastamento do presidente argelino, Abdelaziz Bouteflika, tentando impedir que possa concorrer às eleições de abril, quando tudo indica que conquistará o seu quinto mandato presidencial. Consideram que o chefe de Estado, com 82 anos e que sofreu um AVC em 2013, está demasiado velho e frágil para exercer o cargo. Ao mesmo tempo, exigem reformas económicas que combatam o desemprego jovem, que já excede os 25% – causa que, entre tantas outras, levou à Primavera Árabe, em 2011.

“É uma reação espontânea do povo, que está farto do mesmo presidente, [no cargo] há 20 anos”, explicou Farah Mokrani, jovem universitária argelina de 26 anos, ao i, referindo que “70% dos argelinos têm menos de 30 anos” e “nunca conheceram outra coisa”. “Estão fartos de ser governados pelos mesmos”, acrescentou. 

O chefe de Estado está no poder desde 1999 e nos últimos vinte anos conta com os militares para se manter à frente do destino do país. Em 2016, o parlamento argelino aprovou uma nova Constituição que limitava os mandatos presidenciais a dois, mas sem efeitos retroativos, dando a possibilidade de Bouteflika, que então cumpria o seu quarto mandato, cumprir mais dois – sete total. Em 2013, o presidente sofreu um AVC, deixando de ser visto em público – e quando o é está sentado numa cadeira de rodas. 

Os manifestantes começaram a sair à rua há dez dias, mas têm tido parcos resultados na pressão ao chefe de Estado por carecerem de liderança e organização. No entanto, os grupos da oposição, com divisões crónicas entre si, juntaram-se para exigir que Bouteflika se afaste do poder, dando espaço para novas reformas e liderança – uma mais jovem e que não pertença à geração dos tempos da independência do colonialismo francês. 

Bouteflika ainda não deu sinais de poder aceder às exigências dos manifestantes, mas o prazo de apresentação de candidaturas às eleições terminou ontem.

Agarrado ao poder

“Como pessoa, ele [Bouteflika] quer morrer no poder. É o seu sonho”, disse Mokrani, acrescentando que os militares “são os verdadeiros donos do poder na Argélia”. A jovem universitária acredita que os militares vão acabar por impedir o chefe de Estado de se recandidatar para tentarem desarmar a situação, evitando mais feridos. Porventura, continua, poderão até assumir o papel de “árbitros” para se encontrar uma “solução intermédia” para um novo “sistema político democrático, como anunciado na nossa Constituição”. “Principalmente uma assembleia constituinte que tenha por objetivo repor a Argélia no caminho da democracia”, acrescentou. 

Na sexta-feira, confrontos entre os manifestantes e a polícia causaram 183 feridos, com um morto a ser registado: Hassan Benkhedda, de 50 anos e filho do primeiro primeiro-ministro da Argélia pós-independência, Benyoucef Benkhedda. O ministro do Interior argelino, Noureddine Bedoui,  explicou pelo Twitter que a morte ocorreu na sequência de confrontos entre a polícia e “bandidos não relacionados com os manifestantes”. 

Todavia, a família de Benkhedda contesta essa explicação, com o seu irmão, Salim Benkhedda, a garantir que o falecido tinha participado nos protestos próximos ao palácio presidencial, acusando o governo de ser o responsável. 

Benkhedda pode tornar-se numa figura simbólica dos manifestantes, pressionando o governo e até a polícia a ceder às suas exigências. “As manifestações eram muito pacíficas e com muita comunhão, mas agora estão um pouco com medo de problemas”, explica Mokrani, referindo temer-se que “a polícia receba ordens para ‘bater’ e de infiltrações nas manifestações para se atirar pedras e partir coisas”. 

Mesmo quando a Primavera Árabe avançava a passos largos pelo Norte de África e Médio Oriente, em 2011, a Argélia foi um dos poucos países onde os protestos não levaram à queda do regime ou a uma guerra civil. Focados na contestação do desemprego, falta de habitação, inflação, corrupção, etc, os protestos foram atenuados quase de imediato pelo governo, que avançou com medidas para evitar a degradação das condições de vida e o fim do estado de emergência, que vigorava desde 1992. Ao mesmo tempo, o desenrolar da Primavera Árabe nos países vizinhos pode ter contribuído para atenuar a contestação, porventura por medo sobre qual o caminho que o país poderia seguir: golpes de Estado, ditaduras ou guerras civis. 

“Depois da guerra civil dos anos 90, os argelinos ficaram calados para manter a paz civil”, sublinhou a jovem universitária. Em 1991, a Frente Islâmica de Salvação ganhou popularidade e tudo apontava que nas eleições de 1992 seria a grande vencedora. Temendo a instauração de um Estado islâmico, o governo de então, com o apoio dos militares, cancelou as eleições e instaurou o estado de emergência, com os jihadistas a responderem com ataques contra civis e figuras do Estado. Entre 1992 e 2002, quando o conflito armado terminou oficialmente, mais de 200 mil pessoas perderam a vida – uma guerra que ainda ressoa na sociedade argelina. 

Com a queda do preço do petróleo nos últimos anos, o regime argelino voltou a entrar em dificuldades, ao mesmo tempo que as condições de vida da grande maioria dos argelinos também não melhorou. A recandidatura de Bouteflika foi o rastilho numa situação já de si sensível.