A guerra do plástico

Eu próprio acabei por contribuir para a produção de muito lixo plástico, ao inventar o célebre ‘saco de plástico’ em que o Expresso foi vendido durante cerca de 30 anos. Mea culpa

Na minha juventude passei longas temporadas em Paris e nessa altura lembro-me de ouvir dizer que o plástico representava um terrível problema, pois era praticamente indestrutível. Assim, ir-se-ia acumulando indefinidamente – e chegaria um momento em que o planeta estaria coberto de plástico.

Era uma visão catastrófica – que teria certamente as suas consequências na redução do fabrico de objetos de plástico. Isto pensava eu. Mas o que verifiquei com estupefação nas décadas seguintes foi exatamente o contrário: por cada ano que passava, mais plásticos se fabricavam e se consumiam.

Nessa época longínqua em que comecei a ouvir falar dos malefícios do plástico, as pessoas iam às compras com uma alcofa, onde colocavam o que compravam. A fruta e o pão vendiam-se a granel. O leite vendia-se também a granel ou em garrafas de vidro. A água mineral era igualmente vendida em garrafões, garrafas ou garrafinhas de vidro, e esses recipientes eram em geral reutilizáveis: depois de usados, eram devolvidos aos respetivos estabelecimentos. Para isso, o cliente deixava um ‘depósito’ (em francês ‘consigne’) que lhe era devolvido quando entregava o recipiente. Os copos também eram todos em vidro, assim como os boiões dos iogurtes.

Os talheres de plástico estavam ainda muito pouco vulgarizados. Começavam a aparecer os tupperwares, mas ainda se restringiam à classe média. Os casquilhos das lâmpadas eram em baquelite e metal. As torradeiras eram metálicas. As cadeiras dos cafés e das esplanadas eram em madeira, metal ou metal e madeira. As espreguiçadeiras das piscinas eram em lona com estrutura de madeira. As carroçarias dos carros eram todas em metal, e os plásticos só eram moderadamente usados no interior. Os baldes do lixo eram em ferro.

Ora, o que aconteceu desde aí? Os supermercados generalizaram-se e as pessoas passaram a transportar as compras em sacos de plástico, produzidos aos milhões. Boa parte da fruta nos supermercados começou a vender-se embalada em plástico. Com os pães, os bolos, os biscoitos etc., passou-se o mesmo: tudo embalado. O leite e as águas passaram a ser vendidos quase exclusivamente em garrafas ou embalagens de plástico – que ainda por cima aumentaram exponencialmente, pois o consumo de águas engarrafadas cresceu imenso. Os talheres e os copos de plástico também se vulgarizaram e até em certos sítios os cafés passaram a ser servidos em copinhos de plástico, queimando os dedos. Os boiões de vidro dos iogurtes foram trocados por embalagenzinhas plásticas. O uso de tupperwares (e outras marcas de caixas de plástico para alimentos e não só) foi alargado a todas as classes sociais.

Os casquilhos das lâmpadas são em plástico, as torradeiras têm o chassis em plástico. As cadeiras e mesas de muitos cafés e restaurantes, e das respetivas esplanadas, são totalmente em plástico ou em plástico e metal. Os carros têm hoje extensas aplicações de plástico nas carroçarias e os interiores são todos em plástico. Os contentores do lixo são igualmente plásticos.

Enfim, estamos submersos em plástico!

Tendo em conta a minha experiência parisiense sobre os perigos do plástico, assisti a esta ‘invasão’ com enorme estupefação. Como era possível estar a crescer a toda hora uma indústria que se sabia ser um problema? Admiti que talvez tivessem encontrado um modo de resolver a questão – por exemplo, mandar o plástico para a Lua…

Eu próprio acabei por contribuir para a produção de muito lixo plástico, ao inventar o célebre ‘saco de plástico’ em que o Expresso foi vendido durante cerca de 30 anos. Mea culpa. A questão é que o saco era indispensável para o jornal poder crescer e ser transportável. Ainda fiz estudos para produzir um saco em papel, mas com a tiragem dessa altura era economicamente incomportável. De qualquer forma, o facto de o saco do Expresso ter sido permitido (representando perto de um milhão de sacos por mês lançados na natureza), mostra a atitude ‘desimportada’ que existia em relação ao plástico.

Agora as autoridades declararam guerra ao plástico. Ainda bem. Só não consigo perceber que, sabendo-se hoje o que se sabe há 50 anos, se tenha deixado desenvolver tremendamente, sem aparentes limitações, uma indústria que hoje é apresentada como quase assassina.

Note-se que a União Europeia também teve neste processo um péssimo papel, contribuindo poderosamente para o aumento do consumo do plástico – não apenas em Portugal mas em toda a Europa. Em nome de normas de higiene demasiado estritas, discutíveis ou mesmo disparatadas, a UE obrigou a que imensos produtos tivessem de ser embalados. Ora, quatro modestas maçãs justificam uma embalagem? E um pão-de-Deus precisará de uma avantajada caixa de plástico?

Na guerra ao plástico, mais vale tarde que nunca. Mas aqui andámos muito tempo a dormir.