Octávio de Matos, presente!

Não perdi um amigo, antes pelo contrário. Ganhei mais um amigo que no Céu está de certeza a olhar por mim, até um dia eu ir ter com ele

Era domingo, 3 de fevereiro, faz amanhã um mês. Por volta das nove da noite, o meu telemóvel deu sinal. Estava longe de imaginar o que a Isabel, em estado de choque, me queria dizer: «Más notícias… Preciso da sua ajuda… O Octávio partiu». 
Nem queria acreditar. Quando o lado humano se sobrepõe à vertente médica, tudo se altera. Parti apressadamente para a sua residência, dando início às formalidades médico-legais, cumprindo o meu dever como seu médico assistente. Contudo – e apesar de nesse capítulo tudo ter ficado resolvido na hora – regressei a casa triste e abalado. Era mais um amigo que desaparecia. Um amigo pertencente à família do teatro, onde, pela minha profissão, fui acolhido há muitos anos, passando a ser tratado como um dos seus membros. Por isso, digo-o com muita mágoa, o teatro ficou mais pobre. 

Ator notável, excelente profissional, muito rigoroso consigo mesmo no exercício da sua atividade, ficam-nos na memória as suas hilariantes rábulas nas revistas do Parque Mayer, onde também foi compère. E recordamos a graça natural nas comédias em que participou e que tanto nos fizeram rir. 
Amigo do seu amigo, Octávio de Matos sofria imenso sempre que via um colega seu passar por dificuldades – e não o escondia de ninguém. Fazia questão de marcar presença nos momentos mais dolorosos da vida, manifestando a sua solidariedade junto dos amigos e colegas que, para ele, eram como família. 
A presença de Octávio era sempre aguardada com expectativa tanto nas estreias, nas homenagens ou nas galas, como nas reuniões informais de amigos. Em todas essas ocasiões, lá estava ele com a Isabel, sua mulher e companheira inseparável. ‘Ao lado de um grande homem, há sempre uma grande mulher’. E Isabel Damatta desempenhou esse papel na perfeição, sem falar, claro está, no seu valor como psicóloga, autora e atriz.
Quando ele me procurava no centro de saúde, era impossível passar despercebido. Os funcionários tinham por ele um carinho especial. Numa dessas vezes, uma utente, ao vê-lo junto ao elevador, aproximou-se e disse-lhe: «Obrigado senhor Octávio por me ter feito rir tantas vezes, quando o fui ver ao teatro». 
Ao sentar-se do lado de lá da minha secretária, a sua preocupação era sempre a mesma: o trabalho. «O senhor doutor faça como melhor entender, desde que eu continue a trabalhar. Não posso deixar de trabalhar». Contrastando com a tendência habitual dos utilizadores destes serviços, que tudo fazem para interromper a atividade profissional – solicitando ‘baixas’ a que se agarram com quantas forças têm -, o desejo de Octávio de Matos era continuar a trabalhar. 
Esta questão das ‘baixas’ é grave. Sem hipóteses de as impedir, o Estado vai atirando para os médicos de família a responsabilidade de as passar, resultando daí problemas nem sempre fáceis de resolver. É curioso constatar que a maioria daqueles que precisam mesmo de ‘baixa’ recusa-a – enquanto os ‘outros’ procuram convencer os médicos da necessidade da sua continuação. Octávio de Matos pertencia ao primeiro grupo. Sabe Deus, por vezes, com que dificuldade…

A conceituada atriz Paula Marcelo, que bem conhecemos dos palcos e da TV – e que chegou a contracenar com ele -, dizia-me com uma certa graça: «Para um ator, ficar sem trabalho é como para um doente ficar sem oxigénio».
Outra recordação que dele guardo prende-se com a confiança que sempre depositou em mim: «Podem dizer-me muitas coisas, mas só faço o que o doutor me recomendar». Um bom testemunho nos tempos que correm, onde a confiança nos médicos tristemente se vai perdendo, dia após dia…
Não perdi um amigo, antes pelo contrário. Ganhei mais um amigo que no Céu está de certeza a olhar por mim, até um dia eu ir ter com ele. E não só por mim. Olhará também pelos seus amigos, pelos seus colegas e por todos aqueles que o aplaudiram de pé no final das suas atuações nos palcos da sua vida.
Hoje, curvo-me perante sua memória – e, sempre que se falar de teatro ou de atores, levantarei a voz para dizer bem alto: «Octávio de Matos, presente!».