Timbuctu, a cidade cujo nome pouco imorta

Chegou a ter, no ponto mais alto da sua glória, mais de cem mil habitantes e corria por todo o mundo a fama de que as suas ruas eram pavimentadas a ouro. Hoje dorme, perdida nos confins do deserto, e o vento acumula areia nas portas das casas que parecem afundar-se como um estranho Titanic.

É assim que começa a história de Bruce Chatwin sobre Timbuctu no seu livro A Anatomia da Errância: «Tombuctu, Timbuctoo, Tumbuto, Tombouctou, Tumbyktu ou Tembuch? Não importa como se escreve. A palavra é um slogan, uma fórmula ritual que, uma vez ouvida, nunca mais se esquece».

Durante séculos, Timbuctu foi sinónimo de um lugar inacessível e do destino dourado dos grandes viajantes. Agora, a violência e o terrorismo, voltaram a deixá-la perdida nas distantes areias do Sara. Situá-la no tempo não é fácil. Diz a lenda que nasceu por volta do ano 1000 quando um grupo de tuaregues se instalou nos arredores de um pequeno oásis. Uma velha mulher ficou encarregue de tomar conta do acampamento na ausência dos homens. O seu nome era Buktu. E Tim significa poço. O acampamento cresceu e transformou-se em cidade e a cidade ganhou o nome de Timbuctu.

Sobre o terraço de sua casa, Hama serve-nos o terceiro chá da noite, docíssimo como manda a tradição. O primeiro fora «amer comme la mort», o segundo «doux comme la vie», e este «sucré comme l’amour». A cidade dorme e resume-se às estrelas que têm aquele brilho estranho que só o deserto lhes dá. Amanhã de manhã talvez caminhemos um pouco por ele, ou por esse semi-deserto a que chamam sahel. Talvez entremos nessas pequenas aldeias de pano grosso onde os chefes pedem dinheiro por tudo e por nada e há sempre quem aproveite a chegada de um jipe, por mais velho e decrépito que ele seja, para suplicar uma boleia até Timbuctu. Mas para já vamos ficando presos na escuridão, na conversa e nos chás. 

Nas casas em redor, são poucos os quadrados das janelas que entornam para as ruas pavimentadas a areia luzes amareladas de candeeiros fracos. A areia que o vento traz das dunas que substituem horizontes e que se acumula por todo o lado até ao exagero de termos, por vezes, que descer dela para dentro das portas como se a cidade se afundasse à maneira de um estranho Titanic. No terraço de Hama fala-se de tudo: da História deste país antigo, de política, de futebol. E fazem-se negócios como noutros tempos. Daouda chega com o seu saco de preciosidades e espalha sobre uma toalha e sob os nossos olhos as cruzes das caravanas e dos lugares da sua origem: Timbuctu; Agadez; Gao; Araouane… Para cada caravana sua cruz. Os bilhetes de identidade dos dias em que Timbuctu foi o ponto final da rota do deserto que ligava o Mediterrâneo à África Ocidental. Ouro, marfim e escravos tomavam o caminho do norte e, depois, da Europa e do Médio Oriente. Para sul vinha o sal dos lagos secos do deserto profundo.

A lenda das ruas douradas

Foi desta rota que Timbuctu fez a sua lenda. Por meados do séc. XV tornara-se um importantíssimo centro económico e de enorme influência cultural islâmica. Chegou a ter, na sua glória, mais de cem mil habitantes, e corria nas grandes cortes do mundo o mito de uma florescente cidade nos confins do Sara, tão rica que as suas ruas eram pavimentadas a ouro e onde se acumulavam os mais estonteantes tesouros. Em 1494, Leo Africanus, um viajante espanhol mouro, recordava na sua História e Descrição de África: «Um lugar cheio de médicos, juízes, padres e outros homens instruídos que são ricamente mantidos pela generosidade do rei». Mas nas suas ruas nunca houve ouro a servir de pavimento. E quando os primeiros europeus aqui chegaram, nos primórdios do séc. XIX, já Timbuctu perdera a sua magnificência e o monopólio da rota das caravanas do sal. 

«Aos onze anos soube de Tombuctu que era uma cidade misteriosa no coração da África, onde as pessoas comiam ratos – e os serviam aos visitantes. Na narrativa de uma viagem a Tombuctu, uma fotografia pouco nítida, de uma malga de caldo lamacento com pequenos pés rosados à superfície, excitou-me de sobremaneira»: isto escreveu Chatwin sobre a sua necessidade de partir para Timbuctu. Hoje ninguém nos põe ratos sobre a mesa nas casas de Timbuctu, embora isso já me tenha acontecido nas montanhas do Peru. Podemos ver, pelos desenhos antigos, que Timbuctu nunca foi muito diferente do que é, a despeito de estar reduzida a menos de quinze mil habitantes. As descrições de Gordon Laing, René Caillié ou de Heinrich Barth, os primeiros europeus a aqui chegarem e a contarem a história, fazem sentido e batem certo com as casas baixas de adobe e com a vielas ventosas que transformam as ruas em labirintos mesmo que tenham o nome pomposo de Boulevard de Nôtre Dame. E, infelizmene, deixou por via do fanatismo religioso de fazer parte do norte pacificado do Mali Novo, moto do antigo presidente, Alpha Oumar Konaré, aquando do Pacto Nacional que pôs fim às guerras contínuas entre os rebeldes tuaregues, o exército dominante dos bambaras e as milícias songhai. As infindáveis questões étnicas de África que os velhos colonialismos exacerbaram. A guerra voltou.

A loucura do gordo Dada 

Estamos na estação fresca. Todos os dias, ou quase, chegam a Timbuctu caravanas de camelos lideradas por mercadores árabes ou tuaregues. Vêm das minas de sal de Taoudenni, novecentos quilómetros para norte, no interior do Sara, a mais de quinze dias de viagem. Há caravanas pequenas, de cinquenta ou sessenta camelos; há caravanas enormes, de duzentos e trezentos camelos. Todos eles vêm ajoujados de sal retirado dos leitos de lagos secos há milhares de anos, minas obscuras abaixo dos dez metros de profundidade e com mais de duzentos metros de comprimento. Também aqui, as etnias marcam os seus espaços: os árabes e os tuaregues são patrões, os bella e os haratin são os seus escravos – cuidam dos camelos e trabalham nas minas.

Em redor das caravanas que chegam multiplicam-se os comerciantes. São eles que levarão em seguida o sal até Kouriomé, um embarcadouro no rio Níger que substituiu o porto de Kabara que as vagas de areia teimam em inutilizar ano a ano, e depois em pirogas e «pinasses» até Mopti, a jusante. É esta também a razão porque o Banque de Développement du Mali está apinhado. Trocar dinheiro torna-se um suplício e o mercado negro funciona ao contrário, dá menos do que o banco por cada dólar trocado em francos CFA (Communauté Financière Africaine). 

À minha volta multiplicam-se as caras fechadas, muitas delas escondidas por debaixo dos litham negros e roxos que deixam apenas espreitar olhos escuros e desconfiados – um tuaregue nunca deve mostrar a boca em público. A meu lado um francês gordo e sujo de barbas longas entretêm-se num diálogo risonho com um berbere de face afiada e mãos inquietas. Por detrás do pequeno balcão de madeira e do postigo onde trabalha o empregado, um computador enorme e velhíssimo é manuseado com uma lentidão exasperante. Letra a letra os nomes entram nas teclas com um dedo só. A manhã chega ao fim devagar submetida a um calor seco e a um vento que ferve. E não, não me enganei: esta é a estação fresca.

«’Era bonito?’, perguntou-me uma amiga, quando voltei. Não. Está longe de ser bonito; a menos que se ache bonito paredes de adobe a desfazerem-se em pó, paredes de um cinzento espectral, como se o sol lhes sugasse toda a cor». Talvez Chatwin tivesse razão, pensando bem. Talvez Timbuctu não seja propriamente o lugar mais bonito do Mali. Não o é, certamente. Não é tão belo como as aldeias de pedra do país Dogon ou do que a irrequieta Mopti ou a vívida Djenné, sua irmã gémea do sudoeste, essa sim, uma das cidades mais interessantes e pitorescas da África Ocidental, com o seu colorido mercado das segundas-feiras e a sua imponente mesquita de barro. Mas Timbuktu tem o encanto das lendas e da História. Talvez Chatwin tivesse razão e as suas ruas de areia e poeira não sejam bonitas, talvez as suas casas sem cor não encham os olhos e a alma dos viajantes, mas há, de repente, um raio de luz, uma janela entreaberta e o rendilhado de uma porta que transformam a secura dos labirintos num daqueles filmes antigos que nos tínhamos esquecido de ver.

No bar do Hotel Bouctou, as tertúlias reúnem-se pela noite dentro. Fumando cigarros baratos, contando o dinheiro que rende levar um casal de turistas belgas às dunas do deserto para ver o pôr-do-sol, fazendo apostas para um jogo do campeonato espanhol que a televisão promete transmitir no dia seguinte. 

O gordo Dada liberta-se do seu mutismo e estende o indicador na minha direção com o vigor de uma acusação: «Conheço-te”!», diz. «Viemos juntos da Pérsia no séc. XII. Somos ambos arianos. Eu trouxe para Timbuctu a religião islâmica antes de partir para a Mauritânia». E conclui numa voz cavernosa: «O meu nome é Mohammad Ashtar!» A sua tirada e o meu espanto provocam gargalhadas. E ele torna-se rapidamente o centro das atenções com as suas tiradas enlouquecidas onde tudo se mistura sem nexo nem sentido com laivos de lucidez: «Estou aqui na mão destes garotos como se fosse um imbecil. Mas eles não fazem ideia de quem eu sou». Alguém pergunta: «E quem és tu?» «Sou Abubakar Tafawa, o rei da Nigéria e do Biafra!» 

A vulgaridade do ouro…

As acácias estão secas e sem folhas, pequenos pássaros vermelhos esvoaçam por entre elas de quando em vez; cães e cabras procuram as sombras estreitas; mulheres passam à distância envoltas em boubous de tons claros; burros desfilam pachorrentos como se não conhecessem dono; meninos transportam ramos à cabeça. Da janela pequena do avião minúsculo veem-se os braços do Níger que desaparecem na areia numa inevitabilidade de becos sem saída e aldeias de terra que surgem de repente do meio do nada.

Timbuktu – não importa como se escreve. Mas Tembuch foi o seu primeiro nome nos mapas da Europa do séc. XIV. Tembuch, o reino maravilhoso de África onde os homens caminhavam nus pelas ruas e o seu rei era sábio e rico como nenhum outro por aqueles lugares. Chamavam-lhe Rex Melly e tantas vezes o confundiram com o Preste João, destinado a comandar legiões incontáveis que derrotassem o Infiel. A imaginação dos europeus fez desta cidadezinha plácida, absolutamente silenciosa pela uma e meia da tarde, uma outra Jerusalém que excitava a alma dos viajantes, a fonte do ambicionado ouro vermelho africano. Mas nada disto fermentou apenas da simples imaginação de gente curiosa. Em 1324, Mansa Kankoun Mussa (mansa quer dizer rei em malinké) é o rei sábio do Manden, um reino que se estende do lago Débo à costa atlântica e das florestas da Guiné à Mauritânia. Dizia-se: «As suas minas produzem tanto ouro que se comparam as medidas dos macacos com fios de esferas desse metal». 

Mansa Mussa é o herdeiro de Soundjata, o primeiro Manden Mansa, de Mansa Bogori, chamado Abou Bakar II, que empreendeu em 1312 a travessia do Atlântico e o décimo primeiro de uma lista nobre de reis célebres e profundamente muçulmanos. Nesse ano de 1324, Mansa Mussa empreende uma peregrinação a Meca. Instala-se no Cairo e as suas ofertas e o seu séquito fazem furor no Mediterrâneo. Os presentes de ouro foram tantos que o metal perdeu subitamente o seu valor do Cairo a Alexandria. No seu regresso a Timbuctu, os seus seguidores eram mais ainda: mercadores, artesãos, arquitetos, poetas, estudiosos de letras e medicina atravessaram o deserto e fundaram nos confins do Sara uma grande mesquita e a primeira universidade negra do Mundo. E foi assim que o mito correu de boca em boca.

Não se esquece

Do alto do minarete da mesquita de Mansa Mussa, a mesquita de Djinguereber, pode ver-se toda a cidade, todos os quadrados castanhos dos seus terraços, todos os pináculos, que são poucos, esculpidos nas frontarias das casas onde existe o livro sagrado do Corão. É sexta-feira: ouvem-se os murmúrios dos homens que rezam protegidos na frescura das sombras dos seus interiores de barro. Um mullah cego zanga-se da nossa presença, atira os braços para o céu e grita como um possesso até que nos sente ganhar espaço e distância e voltarmos aos labirintos das ruas apertadas onde raramente nos cruzamos com pessoas. Não tem a grandeza e a elegância da Grande Mesquita de Djenné, nas margens do rio Bani, mas é mais antiga, bastante mais antiga. Hama segue na nossa frente, indicando-nos o caminho, contornando os cotovelos das vielas. Mais logo, quando o sol descer no horizonte, transformando-se num círculo sem cor que a poeira engole devagarinho, levar-nos-á a sua casa onde a mãe nos prepara o prato mágico do toucoussou: bolas de farinha que se mergulham num molho de carne onde boiam pedaços de carneiro temperadas com as onze especiarias de Timbuctu. 

Deito-me sobre a manta de desenhos vermelhos escuros e perco-me na contemplação da lua branca. «Os habitantes de Timbuctu são árabes, berberes, songhai, mossi toucouleur, bambara, bela, malinké, fulani, mouros e tuaregues. Mais tarde vieram ingleses, franceses, alemães, russos e depois chineses. Muitos mais hão de ir e vir e Timbuktu será sempre igual», dizia Chatwin, o viajante compulsivo que sentia aquele estranho horror de ficar em casa. Esperemos que sim, que tenha tido razão. Pouco importa como se escreve, mas nunca mais se esquece.