A ‘chuva dourada’ e o bufo moderno

Rui Pinto, como Assange ou Snowden, é um bufo da era moderna, um pide das tecnologias.

Vale tudo. Passou a valer tudo. Confesso que já nem consigo perceber em que mundo vivemos e se vivemos mesmo neste mundo.

Que mundo este…

Na terça-feira de Carnaval, Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil, ‘postou’ no Twitter um vídeo com imagens de um homem a urinar para cima da cabeça de um outro homem.

Jair Bolsonaro – como era de esperar, uma das figuras mais glosadas e gozadas no Carnaval carioca e nos inúmeros carnavais brasileiros – confessa que tem problemas em publicar o polémico vídeo, mas, ao mesmo tempo, desafia o povo a comentar as repugnantes imagens. 

Um Presidente da República não pode ‘postar’ um vídeo assim!!!

Aquele vídeo é impublicável!!! 

E aqueles sujeitos tinham era de ter sido presos por atentado ao pudor. Não se trata de sexualidade, homossexualidade, bestialidade ou o que quer que seja… trata-se de uma atuação pública indecorosa e criminosa, trata-se da negação da dignidade humana, da negação da condição humana. Uma vergonha.

Em Portugal, felizmente, não se chegou ainda tão longe na desbunda e na insensatez.

Mas já não andamos muito longe.

Menos de 50 anos passados sobre o 25 de Abril, eis que voltam a erguer-se as vozes defensoras dos bufos e violadores da correspondência e da privacidade alheias.

Cheiricar, afinal, é atividade de enaltecer se permitir denunciar os podres de poderes mais ou menos ocultos.

Rui Pinto, um jovem hacker que pelos vistos conseguiu entrar nos servidores dos chamados grandes do futebol português, de uma empresa holandesa associada aos negócios de jogadores (Doyen) e de ‘gente influente’ (na sua própria classificação) deste país e não só, recebeu ordem de repatriamento para Portugal por parte da Justiça da Hungria, onde foi capturado.

Pois então não é que este Assange ou Snowden português, que até terá começado por tentar extorquir as suas ‘vítimas’, passou a ser disputado pelas polícias de investigação de várias nações – incluindo, ao que se diz, pela PJ portuguesa -, por conseguir imiscuir-se nos sistemas informáticos de grandes e poderosas organizações?

E não surgiram logo os politicamente corretos do costume a defender o ‘miúdo’ que denunciou poderes e interesses ditos intocáveis?

É certo que a privacidade é hoje quase inexistente e que o Google sabe onde estamos, de onde viemos e para onde vamos; como certo é que os cartões de débito e de crédito acrescentam o que consumimos e o que pagamos – e há ainda o cruzamento dos dados das contas e da faturação e o mais que se vai inventando -; como igualmente se sabe que, se a Via Verde não mostrar por onde passamos, a georreferenciação do telemóvel encarrega-se de fornecer a nossa exata localização.

Mas, bolas, haja um mínimo.

A violação da correspondência ainda é crime ou já deixou de sê-lo?

Os ficheiros que cada um tem no seu computador pessoal, no seu tablet ou smartphone ainda são privados ou passam a ser partilháveis ou mesmo públicos simplesmente por decisão unilateral de quem a eles consegue ter acesso, mesmo que ilegítimo?

A proteção de dados é uma realidade só válida quando o Estado assim o determina ou é um direito elementar constitucionalmente protegido?

Quando os fins justificam todos os meios, não é só o Estado de direito e a democracia que vão cedendo nos seus alicerces, são os valores que se negam.

Se calhar, os que se chocam com o vídeo nojento postado na terça-feira por Bolsonaro até acharam piada quando, dois dias antes, na TVI, Ricardo Araújo Pereira se pôs a ensinar a uma criança do género feminino como se brinca ao jogo que ele inventou em que rabos tentam defecar em cima da cabeça do desembargador Neto de Moura.

Claro que todos já sabíamos que Neto de Moura é um machista retrógrado e que Ricardo Araújo Pereira não é um conservador de direita como Bolsonaro. Ricardo Araújo Pereira, da esquerda caviar, é o humorista do regime, a quem, como humorista, tudo se desculpa, a tudo se acha piada. Tem piada, mas não tem sempre. E, desta vez, não teve. Nenhuma mesmo.

Quando se cede assim nos princípios e nos valores, não há retorno.

A História faz-se de avanços e recuos civilizacionais – estes quase sempre marcados pela negação das referências e dos valores que impulsionaram aqueles.

Que mundo este… de nojo.