‘O mal no estado mais puro sempre esteve à porta da minha mãe, sempre a perseguiu’

Numa altura em que a Relógio D’Água vem reeditando a obra de Agustina, uma biografia sobre a autora publicada há semanas – O Poço e a Estrada, da autoria de Isabel Rio Novo – chegou aos tops de algumas livrarias. A filha de Agustina, duvida, no entanto, que esse público busque outra coisa além de…

Não vale a pena estarmos com rodeios. Haveria certamente bons motivos para que entrevistássemos Mónica Baldaque pelos seus próprios méritos enquanto autora, mas esta é uma entrevista primeiramente sobre a sua mãe. Foi publicada há semanas uma biografia da autoria de Isabel Rio Novo, O Poço e a Estrada, e, em 2020, sairá pela Relógio D’Água a biografia autorizada, assinada pelo historiador Rui Ramos. Ainda sem título, essa biografia estava já a ser preparada bem quando a família de Agustina foi contactada por Rui Couceiro, o editor da Contraponto, a propósito do primeiro título de uma coleção de biografias de grandes autores portugueses, iniciativa que teve até a bênção da ministra da Cultura.

Mónica Baldaque ofereceu ao SOL um esclarecimento detalhado da sequência de contactos que foram feitos entre o editor e a família – que iremos divulgar na íntegra online –, e que termina com estas palavras duras: «Fica assim claro que quando Isabel Rio Novo afirma nas suas intervenções, entrevistas e escritos que houve uma inversão da posição da família no que toca ao apoio a dar ao seu escrito, induz em erro os jornalistas e o público leitor. A fita do tempo mostra que está a faltar à verdade, a desvirtuar a realidade e a factualidade. Mostra a sua dificuldade em lidar com a verdade, o que a desacredita como historiadora e biógrafa».

Em que medida é que a sua mãe foi influenciando as escolhas que fez na sua vida, profissionais ou pessoais?

Sempre tive uma apetência pelas artes, e para me manifestar, desde criança, através do desenho, e depois pela pintura. O meu pai fez por estimular esse gosto. E depois toda a vida me acompanhou também a escrita. Em certo sentido, acho que as minhas escolhas não foram tanto escolhas como heranças. Não havia mais escolhas possíveis.

Antes ainda de saber quem era a sua mãe – porque, obviamente, quando era pequena a sua mãe seria a única mãe do mundo…

Não, não era. Havia muitas mães à minha volta e todas elas diferentes da minha. Tive logo a noção de que havia nela qualquer coisa que não estava de acordo com as outras.

E essas outras, eram tias…?

Eras as mães das minhas amigas, das colegas de escola. Sempre senti essa diferença, mesmo por parte das professoras, fosse na primária, fosse já no colégio… Sempre senti que havia ali uma deferência muito especial em relação à minha mãe, e, ao mesmo tempo, uma certa cautela… Sempre achei que a minha mãe era diferente das outras mães. Mas sentia-me muito bem com isso, achava-o animador. Achava as outras mães excessivamente dominadoras, autoritárias. A minha mãe não era nada disso; era muito mais solta, muito mais atenta a coisas verdadeiramente importantes. E brincava em relação ao que não era importante.

Quando começou a interessar-se por rapazes, a sua mãe transmitiu-lhe a visão que tinha dessas relações, do que devia procurar, valorizar ou apreciar? E dizia-lhe alguma coisa sobre os rapazes que lhe despertavam interesse?

Lembro-me de me queixar à minha mãe quanto aos rapazes que poderiam interessar-me. E, por sua vez, ela era bastante crítica. Por muito pouco que dissesse facilmente acabava com o meu entusiasmo. Mas eram coisas muito lineares, muito subtis, e que me faziam pensar ‘não, não é este’. Mas isso não me tranquilizava, fazia-me sofrer. Acho que todas as mães têm as suas dúvidas em relação ao rapaz que pode servir para a sua filha… Aquele que lhe pode assegurar um destino, uma vida imaginativa. Mas ela sempre foi um pouco… No fundo, estava certa, o que me dizia era o certo.

E quanto aos rapazes?

A minha mãe sempre temeu que eu fizesse um casamento burguês, que me afastasse da educação que tive e dos gostos que adquiri. Por isso, pesava os meus pretendentes com uma inquietação compreensível. Como eu já não podia colocar um anúncio no jornal [a forma como Agustina e o marido, Alberto Luís, se conheceram], nada se repete, e as histórias de príncipes já não são credíveis, tive de acreditar em mim para a escolha que fiz. E correu bem.

Chegou ao ponto de ter medo de apresentar uma pessoa à sua mãe? Não digo apenas rapazes, mas amigas ou assim… por sentir que o juízo da sua mãe poderia ser…

Mas era. Mesmo em relação a raparigas com quem eu me dava, e que iam passar férias comigo para a quinta… Ainda no outro dia reli uma carta da minha mãe para mim, quando eu estava a passar férias no Douro, e ela tinha levado uma amiga minha para que passasse aquele período comigo.

Que idade tinha nessa altura?

Foi nos tempos do colégio. Teria uns 16, 17 anos… A forma como ela descreve a minha amiga é terrível. Ela praticamente desfê-la… (risos). Em poucas linhas, ao descrever a viagem que tinha feito com ela, e as conversas que tiveram no carro … Tinha-a ido buscar a casa dos pais dela. Toda essa descrição era, por si só, um capítulo de qualquer história. E era realmente muito dura. Mas eu estava habituada a isso, acho que já nem podia viver sem isso, era como um vício. Era um vício ouvir a minha mãe falar sobre as outras pessoas.

Mas se havia esse lado de juízo frio, crítico ou até cínico, por outro lado, era também capaz de entusiasmos? Quando lhe apresentava uma pessoa, a sua mãe podia ficar encantada?

Não, nunca (risos). Acho que a minha mãe nunca foi muito sensível a encantos… Ela dissecava de tal maneira as pessoas, desde as empregadas até aos médicos, aos escritores, enfim, aos poetas que frequentavam a casa, a todos… Ela analisava as pessoas com a mesma força, com a mesma exigência, com a mesma inteligência, tanto fazia quem fosse.

Em que medida lhe parece que Agustina se confunde com a figura da Sibila, sendo claramente uma mulher que valorizava muito a leitura mística da existência?

Bem, essa figura, como a minha mãe sempre disse, é a tia Amélia, que eu conheci. E considero que a minha mãe é uma consequência dessa ligação à tia Amélia. Ela seguiu-a e tornou-se tudo aquilo que a tia Amélia era mas não foi capaz de ampliar para além do pequeno meio onde vivia, e que era rural, mas tinha já todas as capacidades para ser o que a Agustina foi. E é.

Na sua convivência com a sua mãe, que sinais lhe inspiravam essa ideia de um poder?

A minha tia Amélia era uma mulher profundamente lúcida, que é o que a minha mãe sempre foi e ainda é. Uma lucidez que ultrapassa tudo aquilo que temos como medida. Ela via o que os outros eram, apercebia-se das engrenagens das relações, do pensamento das pessoas, e utilizava isso de forma magistral. Acho que toda a obra da minha mãe foi isso: falar das relações humanas, escutá-las até à última. E foi isso o que aprendeu com a tia Amélia, uma mulher que praticamente não sabia ler, e que assinava mal o nome dela, mas que também não precisou disso para ser uma figura imponente e central no lugar onde vivia. Penso que toda a educação da minha mãe – e considero A Sibila um livro exemplarmente educativo, na medida em que ensina o que é a educação – foi esse exercício de leitura da alma humana. Isso é esgotante. E senti muitas vezes na minha mãe momentos de grande cansaço e de desilusão em relação ao mundo e às pessoas. Justamente porque tentava penetrar tão fundo, perceber quem eram as pessoas, conhecer a alma delas, que as desfazia, as refazia… e isso é um exercício difícil de aguentar uma vida inteira.

Cada vez se fala mais no papel que teve o seu pai na vida e na obra da sua mãe. Mesmo para os nossos dias, um homem assim parece muito difícil de encontrar.

É, eu sempre achei que a história deles era muito rara. Mais ainda porque o meu pai nem sequer vinha de uma família de intelectuais nem nada que se pareça. O meu avô era militar, era o mais rígido e disciplinado que se possa imaginar. Embora fosse um homem que lesse, estava longe de ser um intelectual. A minha avó era uma senhora doméstica… E viviam em Coimbra, um meio muito fechado e pouco dado aos grandes voos literários. Como é que ele se apercebeu que uma rapariga de 21 anos podia ser uma figura de génio? Podia ter-se enganado, ter-se simplesmente ficado encantado por uma rapariga bonita, como era a minha mãe, e um pouco arrojada… Arrojada pela forma como procurou alguém que a pudesse compreender e acompanhar… Podia ter achado que não passava disso. Mas não. Apercebeu-se de que ela tinha um destino especial e quis envolver-se nesse destino. E o meu pai nunca abdicou daquilo que era, e ele era um bom advogado, um homem muito culto, que lia, lia, lia e acompanhava a minha mãe nas leituras que fazia, e discutiam… Eu pouco partilhei esses momentos, em que estavam os dois, mas apercebia-me de que havia um acordo forte nos gostos e nas leituras que faziam. O meu pai comprava-lhe muitos livros… Mas também não é aquilo que agora se diz: que o meu pai é que era, que se não fosse o meu pai a Agustina não teria sido quem foi… Também não é assim. Agora, que o pai foi uma presença fundamental na vida dela… Até para o seu equilíbrio, foi. Porque eu não sei o que é que a minha mãe seria se não tivesse casado, se não tivesse tido uma filha. Teria sido outra pessoa. Teria enveredado por outro tipo de vida, até talvez mais aventureira, como estava no sangue da família!

Pensando no que aconteceu com o Pessoa… Estas grandes figuras e que tantas vezes não têm uma biografia tão suculenta que explique a dimensão do seu génio… Como é para si ver cada vez mais as pessoas a falarem da Agustina nessa figura que perde realidade e acaba servindo de matéria para qualquer coisa de ordem mítica ou anedótica?

Parece-me que isso é um pouco inevitável. Ao mesmo tempo, é um erro tão básico que até me custa a acreditar como é que se possa cair nele. Como é possível achar que uma mulher que escreve a obra que ela escreveu se possa resumir à petite histoire? Não pode ser. Tem de ser muito mais do que isso, tem de ser outra coisa. E é isso que me parece que é muito difícil de lá chegar. Eu estou a reler a obra toda da minha mãe, sob um outro prisma (que não partilho com ninguém), e realmente apercebo-me da mulher que ela é, e que sempre foi. E não é nada disto que querem fazer dela. Ao mesmo tempo que leio a obra dela, leio o Diário Íntimo de Kierkegaard, que está completamente sublinhado pela minha mãe.
E quando leio este diário prestando atenção ao que ela sublinhou percebo o que é que ela é, o que é que foi. Acho que ainda está para vir alguém que saiba perceber o que foi a vida de Agustina. Porque só isto do anedótico, do fácil, é muito pouco, e não tem nada a ver com aquilo que ela escreveu.

Mas o que costuma ouvir dizer sobre a sua mãe que lhe provoca essa rejeição?

‘Ah, a sua mãe era tão engraçada. Quando nós fomos aqui, ali, não sei, acolá, ela só queria ir às lojas comprar pérolas, só queria era ver as montras, depois ria-se de tudo, fazia troça e depois trocava as horas das conferências…
Ai era tão engraçada’. E eu penso: só chegaste aí.

Outra coisa que lhe gostaria de perguntar é sobre esta questão de ser uma escolha da família manter Agustina retirada das atenções públicas. Como está a sua mãe? Recuperou a saúde e está lúcida?

A minha mãe esteve realmente muito mal, teve um AVC, depois mais tarde teve outro, mas recuperou quase a 100%. Quase. Ela anda e é autónoma. O único problema que ela tem, e nem é constante, é a fala.

Mas chega a falar consigo com absoluta consciência e memória?

Responde absolutamente a tudo o que eu lhe pergunto. Tudo.

Quando está num momento bom é igual ao que era antes dos AVCs?

Não, não. Mas não está diminuída. Ela vai fazer 97 anos, também é preciso ter isso em consideração. Não tem 30 nem 40. Mas levanta-se todos os dias, passeia quando o tempo está bom, recebe os netos e os bisnetos, e come sozinha, e dorme bem. Eela está bem. Está é com uma dificuldade ao nível da fala. E não é só isso; está também cansada. Está ausente. Mas está ausente porque quer. Não é por doença, é porque, realmente, chegou ao fim do que considerou ser o destino dela. Está noutra fase da vida, uma fase que eu considero tão importante como todas as outras. Ainda sobre a retirada da vida pública e dos olhares curiosos, cumpre-se a vontade de Agustina, e respeita-se uma pessoa, que tem direito ao seu tempo de recolhimento.

E em relação à morte do seu pai. Ela apanhou com aquilo de frente?

No próprio dia não. Enfim, a situação era complicada, tudo isso foi difícil de gerir. Mas logo a seguir, depois do enterro, soube. E claro, ficou… ficou em silêncio. Ficou triste. Ficou muito mais metida com ela própria, e muito mais distante.

Ela sabe alguma coisa do que se passou com a edição da sua obra? Estes percalços de ter, na prática, desaparecido a sua editora de sempre [a Guimarães, diluída no grupo Babel]?

Sim, chegou a saber. Ainda participou na decisão de mudar de editora. Ela sabia que as coisas não estavam a correr bem há muito – com a Babel –, e ainda chegou a acompanhar. Agora, embora não acompanhe a edição das suas obras, eu mostro-lhe os livros. Ela olha, e aprecia, mas realmente está noutra ocupação, num outro mundo.

Muitas vezes quando se fala de Agustina também se diz que, recusando o feminismo, ela soube ser bem mais ousada e mais independente do que tantas das mulheres que se dizem feministas. Por outro lado, Agustina parece representar uma tradição da força e do poder do feminino que precede em séculos estas novas compreensões…

A minha mãe nunca gostou dessa colagem simplista ao feminismo. Sempre a incomodou e ironizava, às vezes com pouca paciência, quando lhe vinham perguntar se não se via como uma feminista. Ela nunca se considerou isso. Ontem vi aquele filme A Portuguesa [de Rita Azevedo Gomes]… Parte de um conto do Musil, adaptado pela minha mãe. Os diálogos são dela. E aí é bem analisado, embora sugerido, o que é o poder da mulher e o que é o poder do homem. Acho-o um filme perfeito na forma como nos esclarece sobre o que é o poder de um e do outro. Os diálogos são fabulosos, e realmente fazem-nos perceber que o poder da mulher se manifesta noutro nível. A mulher não tem de competir com o homem nos mesmos centros de poder. Tem outros caminhos, outras intenções … São destinos diferentes. No caso deste filme pensa-se no homem e no poder que lhe é dado pela guerra, seu estado natural, desde sempre; ao passo que a mulher permanece em casa, e nada disso tem que ver com o doméstico, mas com o espaço, cercado, recolhido, armadilhado, em que ela exerce o seu poder de outra forma, mais discreta, mais secreta, e ao mesmo tempo, terrível. São poderes distintos, que nem sequer se equilibram, nem completam, nem dialogam.

A afirmação das mulheres hoje parece passar por uma visão cada vez mais masculina, no sentido da luta e destruição do outro, da competição que tudo esvazia…

Aquilo que eu sempre senti na família – aquela que eu conheci, os meus avós, e pensando no que diziam dos pais deles, sobretudo no que toca às figuras femininas – mostra-nos a forma como as mulheres exerciam o seu poder sob a forma de transmissão da vida, e das sabedorias aliadas a essa condição. Não havia espetáculo, nem tiranias nem a necessidade de protagonismo, nem de vencer, não, prendia-se com aquilo que era essencial cumprir-se. Aquilo a que o papel de mulher as obrigava para serem bem sucedidas era educarem bem os filhos, para que a família se expandisse harmoniosamente, e o património se respeitasse. A força das mulheres estava nessa vocação, e sempre a senti na família: essa certeza na presença nos momentos em que era preciso tomar decisões. Não havia dúvidas, não havia hesitações nem más escolhas. Tudo o que era feito era o que se mostrava necessário fazer-se. E sempre achei que em todas as mulheres da família havia essa capacidade de julgamento e de o comunicar a todos, como uma lei.

Por outro lado, a sua mãe podia ter bastante maior compreensão por aqueles que eram capazes de manifestar paixões violentas, ódio profundo, havia nela um certo desprezo pelas figuras apagadas, mornas… Como lhe parece que ela lidou com o mal?

A minha mãe sempre achou que o bem e o mal são muito escorregadios, qualquer um deles rapidamente pode estar no outro lado. É com isso que nós temos de contar nesta vida. O mal deve ser entendido. Assim como o bem. Deve-se refletir sobre o mal para que se possa entendê-lo e, se necessário, combatê-lo. Mas não sei se se deve combater o mal, não estou segura. A fronteira é que é muito difícil de traçar: perceber onde começa e onde acaba o mal. A fronteira é tão ténue que me parece que só no nosso íntimo somos capazes de percebê-lo, mas para isso há que ter uma grande vida interior e um grande conhecimento de si próprio.

Há aquela polémica com o crítico literário Jaime Brasil, quando Agustina era ainda muito nova, e nesse momento nota-se que ela percebe perfeitamente aquilo que não pode dizer, as armas que apesar de saber manejar, enquanto mulher, não lhe são permitidas. Gostava de saber como é que a sua mãe lhe transmitia esse cuidado que as mulheres têm de observar, porque no espaço público ainda não lhes é concedida igualdade de armas numa situação de confronto.

A minha mãe, como ela própria o disse, foi muitas vezes sujeita a situações de tentação em relação ao mal. O mal no estado mais puro sempre esteve à porta dela, sempre a perseguiu. Muitas vezes na sua vida ela passou por momentos de grande sofrimento para dominar esse mal que lhe aparecia. Normalmente, eram pessoas que chegavam a ser diabólicas. Em vários momentos da vida dela apercebi-me de que havia essa luta com o mal. Haverá pessoas que estão mais sujeitas a serem confrontadas com o mal do que outras. E ela sempre as soube ultrapassar. Por isso é que eu acho que o estado a que a minha mãe chegou hoje é um estado de profunda tranquilidade. Ela virou as costas ao mundo e está absolutamente insensível a todas estas tentações. Está em paz, o que é muito reconfortante, é muito bom vê-la assim.

Pode dar-me exemplos desse tipo de situações… Lembro-me de uma frase, que julgo que seja do Kafka: A sedução do mal é o convite à luta. Porque é muitas vezes na luta que nos perdermos e somos conquistados para o mal. Era isso o que receava a sua mãe?

Era. Eram pessoas que a desafiavam, mas não para que ela crescesse e se elevasse, não, era para a destruir. E aí ela tinha que ter armas… tinha de as inventar, de as descobrir dentro dela, da alma dela…

Lembra-se de algum desafio forte que não aquele que referi?

Houve vários. Houve um num encontro de escritores em Lourmarin, no sul de França… Daí é que vem depois a inspiração para Embaixada a Calígula, que é a descrição de todo esse processo. Ao entrar uma mulher ainda muito nova num mundo de homens e que faz uma primeira conferência que cai como uma bomba no meio daquela gente que, afinal, se revela formatada, conservadora… Ela aí tem o primeiro embate com forças a que não estava habituada. Como ela diz no livro e em correspondência que tem com várias pessoas nesse período, a angústia, o sofrimento e a dureza do confronto com as suas próprias forças…
E desgastava-a muito, mas, na verdade ela sempre precisou desse conflito para continuar.

E lembra-se de a sua mãe dizer alguma coisa sobre o meio literário português, ou não lhe interessava muito?

Não lhe interessava, e sempre achou que era muito deficiente, que lhe faltavam muitos ingredientes para ser estimulante. Meio literário para ela era o convívio que tinha lá fora. Em França, em Itália, era onde a minha mãe se sentia mais à vontade.

Sabe que a biografia de Isabel Rio Novo chegou ao top de algumas livrarias? No entanto, e curiosamente, nenhum dos livros da Agustina que estão a ser editados chegou ao top.

Claro, isso só prova que a biografia em nada está a contribuir para a leitura de Agustina!

Mas, de facto, percebe-se que há um interesse na Agustina…

Sempre houve uma curiosidade muito grande em relação a Agustina, um desejo de saber o que estava para lá dessa senhora simpática. Mas depois não iam ao ponto de lhe ler a obra, que é difícil. É muito difícil lê-la, entendendo, porque ler a eito, isso faz-se, mas perde-se o que está por trás, o que inspira cada uma daquelas obras. Mas uma vez mais lhe digo que não me parece que o leitor desta biografia seja o leitor das obras de Agustina. E quando se pensa que esta biografia irá trazer mais leitores para a obra, eu não acredito.

Porque este leitor busca o mexerico, ao passo que o outro busca um diálogo exigente?

Sim. É verdade que não li a biografia, mas pelo que me chega, e pelas entrevistas que li dela [Rio Novo] é que é pouco, mas é o suficiente para satisfazer uma certa curiosidade. Mas não será aquele livro de que o leitor se aproprie, denso, que se tem na mesa de cabeceira e que se vai lendo, relendo, percorrendo, meditando sobre ele, lendo para além dele. Não creio que seja, mas posso estar enganada.