África minha…

Tal como Caetano, também Marcelo regressou a Portugal com o peito cheio de África e de lusofonia

Meio século separa duas visitas de Estado a Angola, ambas com exuberante participação popular. Em abril de 1969, Marcello Caetano deixava para trás as ‘Conversas em Família’ – uma charla política regular, que fez época na RTP a preto e branco – e voava até Luanda, onde foi recebido em festa, como o comprovam os vídeos disponíveis no arquivo do operador público.

Quase a celebrarem-se as ‘bodas de ouro’ desse momento considerado histórico pelo anterior Regime – que vivia já fustigado pelos movimentos independentistas nos chamados territórios ultramarinos –, foi a vez de Marcelo Rebelo de Sousa desembarcar na capital angolana, acolhido no meio de previsível euforia.

Mas não ficam por aqui os registos dignos de nota: cinco anos após a visita a Angola, Caetano foi deposto pelo 25 de Abril, escrevendo mais tarde um Depoimento sofrido, com as memórias do seu desafortunado protagonismo no declínio do Estado Novo.

Já Marcelo Rebelo de Sousa confia ser reeleito com o «maior número de votos de sempre», segundo o mais recente livro publicado a seu respeito (ultrapassando, portanto, os 70,35% de Mário Soares), e estar em plenitude de funções quando o Papa se deslocar a Portugal para presidir às celebrações das Jornadas Mundiais da Juventude em 2022.

Talvez porque numa visita de Estado há pouca margem de improviso, Marcelo teve o cuidado de programar a sua ida a Angola de forma a coincidir com efemérides significativas, desde o aniversário natalício de João Lourenço até ao facto de completar três anos de mandato presidencial.

Tal como Caetano, também Marcelo regressou a Portugal com o peito cheio de África e de lusofonia. Entre a antiga colónia e o país independente, as duas visitas moldaram um horizonte de promessas, apesar das cicatrizes dos dois lados.

Embora o antigo presidente do Conselho tivesse um perfil reservado, ao contrário do atual Presidente da República, pródigo nos afetos, ambos procuraram (e tiveram) banhos de multidão. E ambos voltaram com o mesmo sentimento de terem acelerado os ponteiros da História.

Com uma diferença: para Caetano, a História foi madrasta; para Marcelo, a História faz-se, invariavelmente, todos os dias.

Salvo raras exceções, os media portugueses ignoraram, deliberadamente ou não, uma simbologia que não é estranha a afinidades políticas, académicas e, até, familiares.

Numa entrevista ao Jornal de Angola, Marcelo mostrou-se feliz pelo «virar da página em relação a questões pendentes».

Ora, se é certo que Angola reatou os pagamentos em atraso a empresas portuguesas, conforme assinalou o mesmo jornal, já as questões na esfera da Justiça se têm revelado um ‘bico de obra’.

Bem pregou Marcelo nessa entrevista que «hoje o combate à corrupção é mais prioritário do que nunca», quando confrontado com o facto de o Presidente João Lourenço ter «encabeçado uma cruzada contra a corrupção e a impunidade».

Mas se o caso do ex-vice-Presidente angolano Manuel Vicente deixou de ser um ‘irritante’ (graças a um ‘golpe de rins’ da Justiça portuguesa…) e o episódio do Bairro da Jamaica passou a ser um ‘não caso’ (menos para a PSP…), já se anunciam novas querelas de evolução imprevisível.

É, pelo menos, o que se deduz da participação criminal que deu entrada na PGR, assinada pelo antigo embaixador Adriano Teixeira Parreira, na qual se formulam suspeitas sobre as relações «perversas» entre altos dirigentes do Ministério Público, advogados portugueses e membros da «elite cleptocrática angolana», baseada nas denúncias do portal eletrónico do jornalista Rafael Marques.

O texto sobre «o lamaçal entre as Justiças angolana e portuguesa», publicado em Janeiro naquele portal, promete dar que falar e trazer novas dores de cabeça aos políticos e às autoridades judiciárias.

Com os media mal refeitos do périplo de Marcelo a Angola, Pacheco Pereira resolveu agitar as águas e diagnosticar que há um «enorme défice de escrutínio» ao Presidente da República. E enfatizou que «o número de notícias hostis sobre o Presidente da República pode ser contado pelos dedos de uma mão».

Não se enganou. A agenda presidencial confunde-se cada vez mais com a agenda mediática. Raramente o jornalismo foi tão ‘pé de microfone’.

E até já se ouviu o comentador político Marques Mendes, também conselheiro de Estado, comparar na SIC o «populismo bom» de Marcelo com o «colesterol bom»…

Com a cumplicidade dos media, uma oposição abúlica e um ‘Presidente amigo’ que elogiou António Costa ainda em solo angolano (rejeitando a leitura de que tem sido o ‘seguro de vida’ do Governo, esquecido das graves falhas do Estado em Pedrógão Grande, em Tancos ou em Borba), o escrutínio ficará irremediavelmente no tinteiro….