Bater em quem está no chão

É normal um conselheiro de Estado achar que quem diz ‘idiotices’ pode ser enxovalhado à vontade?

SEMPRE TIVE tendência para defender quem está na mó de baixo. Com 24 anos publiquei um artigo no jornal A Bola em defesa de Fernando Vaz. Este era um treinador de futebol respeitável que esteve no Belenenses, no Vitória de Setúbal e no Sporting, entre outros clubes – e que, quando saiu de Alvalade, foi vítima de autêntico bullying. Por qualquer razão que não recordo, todos lhe batiam: os sportinguistas, os comentadores e até adeptos de outros clubes. Um treinador que chegara a ser celebrado como um herói via o seu nome arrastado na lama.

Indignei-me com a situação e, embora não o conhecesse, saí em sua defesa. Passados uns dias recebi uma carta dele. Em 6 densas páginas escritas à mão, Fernando Vaz exprimia-me o seu reconhecimento: eu fora a única pessoa que, no meio da sua desgraça – e sem o conhecer -, se tinha erguido a defendê-lo. Li com emoção essa carta, que revelava uma pessoa profundamente ferida e traumatizada. Um homem de 54 anos, com carreira feita, agradecia com humildade a um ‘miúdo’ que podia ser seu filho por ter assumido a sua defesa.

RECORDO OUTRO episódio do mesmo tipo ocorrido num acampamento dos escuteiros ou da Mocidade Portuguesa. Aí eu teria ainda os meus doze anos. Um colega nosso tivera um comportamento inconveniente, tentando apalpar o sexo a colegas (sendo alcunhado como o ‘papa-pilas’). 

Como castigo, o chefe do acampamento mandou formar duas filas paralelas, com um estreito corredor entre elas por onde mandou passar o rapaz. A ordem era todos lhe darem um pontapé no rabo. Uns davam com mais força, outros com menos. Eu fui o único que não dei. O miúdo olhou para mim com uma expressão de reconhecimento que nunca esqueci.

AO LONGO DA VIDA tem sido sempre assim: não dou pontapés em quem está na posição fraca, defendo os que são vítimas de tentativas de linchamento. Tal aconteceu, por exemplo, com a ministra Leonor Beleza, no famoso processo do sangue contaminado. A revista Visão publicou uma capa com a seguinte pergunta: «Quem põe as mãos no fogo por Leonor Beleza?». E eu escrevi um texto que começava assim: «Eu ponho». Posteriormente, Beleza cortou relações comigo por causa de uma crítica política que lhe fiz. Mas, apesar disso, nunca me arrependi do apoio que lhe dei. 

INVERSAMENTE, não tenho respeito nenhum por quem, vendo uma pessoa no chão, lhe vai dar mais um pontapé. Isso define um ser humano. Vem isto a propósito do famigerado caso do juiz Neto de Moura. Como escrevi há 8 dias, algumas mulheres podem sentir-se injustiçadas e mesmo indignadas com os seus acórdãos – mas nada justifica a perseguição brutal que lhe moveram. Cada novo artigo não tinha por objetivo apresentar um novo argumento – a única ideia era bater em quem já estava no chão.

Causou muita indignação ele citar a Bíblia. Mas porquê? É verdade que somos um Estado laico. Mas o cristianismo está plasmado nos princípios da nossa civilização. Não é uma questão religiosa – é um facto histórico. Num país como Portugal, citar a Bíblia não é nenhum crime. Citam-se por vezes nos acórdãos judiciais obras muitíssimo mais controversas.

Na Circulatura do Quadrado (nome bizarro!), António Lobo Xavier pareceu sair em defesa do juiz criticando a «gritaria» à sua volta – mas, com o evoluir do programa foi recuando, recuando, a tremer de coragem… E acabou a opinar que,  quem diz as «idiotices» que o juiz Neto de Moura  disse, «não tem de se queixar das brincadeiras de Araújo Pereira ou Bruno Nogueira».

Ora, que ‘brincadeiras’ eram essas?  Ricardo Araújo Pereira inventou um jogo destinado às crianças em que se viam muitos rabos distribuídos pelo ecrã, e o objetivo do jogo era conseguir que cada rabo defecasse em cima da cabeça do juiz Neto de Moura. Edificante! 

Pergunto: Lobo Xavier brincaria com os seus filhos a este jogo? E será normal um conselheiro de Estado achar que quem diz ‘idiotices’ pode ser enxovalhado à vontade?

Que o juiz é retrógrado, está fora de causa. Mas isso dá aos outros o direito de o insultarem? Só os progressistas e os neutros têm direito a não ser enxovalhados? 

Quanto aos Araújos Pereiras deste mundo, é tempo de perceberem que um insulto pode não dizer nada sobre quem é insultado – mas diz muito sobre o caráter de quem insulta.

A campanha contra o juiz Neto de Moura foi simplesmente deplorável. Aqueles que nela participaram, que foram dar mais um pontapé no homem quando ele já estava no chão, deviam olhar para si e ter vergonha.