Quando vier o silêncio

Em pequena queria escrever uma lista minuciosa de como sentia que os adultos deveriam tratar as crianças. Foi mais uma daquelas coisas que queria muito fazer mas que acabaram por ficar na gaveta. Tinha percebido que as crianças veem e sentem as coisas de maneira muito diferente dos adultos e já sabia que quando crescesse…

Em pequena queria escrever uma lista minuciosa de como sentia que os adultos deveriam tratar as crianças. Foi mais uma daquelas coisas que queria muito fazer mas que acabaram por ficar na gaveta. Tinha percebido que as crianças veem e sentem as coisas de maneira muito diferente dos adultos e já sabia que quando crescesse ia esquecer-me de tudo. Queria transportar aquele sentir precioso através do tempo. Acredito que se o tivesse feito seria uma melhor mãe e talvez uma melhor pessoa.

Parece que foi ontem, mas inevitavelmente começo a pensar cada vez mais como adulta e menos como criança. Dou por mim a dizer coisas que ouvi milhares de vezes e de que não gostava particularmente. Umas delas talvez fizessem parte dessa lista, quem sabe? Mas tento contrariar isso. Redescobrir aquela pele sensível, ser compreensiva mesmo quando nada parece fazer sentido, ter paciência quando nos levam ao desespero, aproveitar para brincar e divertir-me com eles. Beber esta criancice preciosa, esta alegria contagiante, esta pureza e assim recuperar também a menina da lista por fazer. Até porque à medida que os meus filhos crescem vou sentindo cada vez mais que falta pouco para passar para o outro lado – dos mais crescidos ainda – já que cheguei tão depressa a este.

Não podemos fazer parar o tempo, não o podemos agarrar, mas podemos usá-lo melhor, fazê-lo crescer. E quando este tempo passar e o nosso colo já for demasiado pequeno para os nossos filhos, virá outro. Mais silencioso, menos animado, mais demorado. Às vezes enfadonho e triste, ao contrário deste que pode ser por vezes exasperante e cansativo mas nunca triste, nunca enfadonho. A casa que escolhemos para ter uma família grande e desinquieta ficará mais vazia, quase deserta, as refeições serão tomadas tranquilamente. Não haverá brigas entre irmãos, nem bolas a bater em todo o lado. Não voltarei a acordar com gritos, gargalhadas, o som de pezinhos a correr e brinquedos a cair logo de manhã, mas sob um silêncio ensurdecedor. Não haverá pressa, haverá mais tempo, mas menos coisas com que o preencher. Haverá saudades, possivelmente, muitas saudades. Mas não podemos deixar que nos vençam. Teremos de descobrir uma forma de voltar a ser quem éramos, com aquilo que somos hoje, de fazer todas aquelas coisas que gostaríamos de fazer agora mas que não conseguimos. Talvez faça uma lista minuciosa de tudo o que gostaria de fazer para na altura não me esquecer. Como ir ao cinema (se ainda existirem salas), viajar por mais de cinco dias, jantar fora, namorar, sair à noite, estar com os amigos, ver um filme à noite sem adormecer enquanto o escolhemos ou ler na cama sem começar a fechar os olhos no primeiro parágrafo. Não posso deixar que fique para trás, porque será talvez a última oportunidade para o fazer. Parece que de fase para fase somos pessoas diferentes e já sei que me vou esquecer. Desta vez vou levá-la comigo, para quando o silêncio vier.