Brasil. Temer encurralado

O antigo presidente brasileiro foi detido esta quinta-feira, em São Paulo. É acusado de corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e de liderar uma organização criminosa que saqueava os recursos públicos.

Na quinta-feira, escoltado por agentes fortemente armados, o antigo Presidente brasileiro Michel Temer saiu da sua casa em São Paulo e foi encaminhado para um carro da polícia – o destino era a sede da Polícia Federal do Rio de Janeiro, onde prestou declarações e ficou em prisão preventiva.  O antigo Chefe de Estado é suspeito de liderar uma «gigantesca organização criminosa […] cujo único propósito é recolher parte dos valores pagos em contratos públicos e dividi-los entre os participantes do esquema». A fundamentação da prisão preventiva consta do despacho do juiz Marcelo Bretas, da 7.ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, a que o SOL teve acesso. 

Na decisão judicial de 46 páginas é pedida a prisão preventiva a outras sete pessoas, entre as quais o seu braço-direito de sempre, João Baptista Lima Filho, conhecido por coronel Lima, e o antigo ministro de Minas e Energia, Moreira Franco. Outras duas pessoas foram detidas e colocadas no regime de prisão temporária, ou seja, apenas para realização de algumas diligências.

No momento da detenção, Temer terá dito ao jornalista brasileiro Kennedy Alencar que tudo não passava de uma «barbaridade». E, mais tarde, o seu advogado, Thiago Machado, criticou a detenção por entender «ser um abuso de direito na medida em que não há fundamento legal e embasamento concreto para que seja determinada uma medida dessa natureza». 

As autoridades pediram a prisão preventiva por considerarem que existem factos que indicam que os investigados agiram «para ocultar ou destruir provas de condutas ilícitas», acrescentando que «uma simples ligação telefónica ou uma mensagem instantânea pela internet são suficientes para permitir a ocultação de grandes somas de dinheiro». 

A delação que tramou Temer

A detenção de Temer foi realizada no âmbito de três investigações nascidas da Lava Jato – as operações Radiotatividade, Pripryat e Irmandade – sobre a construção da usina nuclear Angra 3. Em causa, continua a decisão judicial, estão «atos ilícitos ligados a crimes de corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa». 

A usina nuclear começou a ser construída na década de 80, não tendo sido até ao momento concluída. Para que pudesse participar na empreitada, a empresa de construção civil brasileira Engenix terá pago um suborno na ordem dos 1,091 milhões de reais à organização alegadamente liderada por Temer, que terá usado a sua posição de poder para garantir a alocação do contrato. Os casos citados no documento da acusação aconteceram em 2014, quando Temer era vice-presidente de Dilma Rousseff.

Os subornos terão sido recebidos pelo braço direito do antigo Presidente, o coronel Lima, que, diz a acusação, «tinha carta branca para atuar em nome de Temer»  e usava «pessoas jurídicas para firmar contratos de prestação de serviço fictícios e possibilitar o recebimento do dinheiro ilícito», nomeadamente as empresas ARGEPLAN e PDA. 

Tudo corria pelo melhor para o grupo até a Lava Jato dar origem a outras investigações. O cerco apertou-se ao dono da Engevix, José Antunes Sobrinho, e, na sua delação premiada, denunciou toda a organização: «Sobrinho relata situações, além do projeto de Angra 3, nas quais coronel Lima viabilizou, aparentemente, o recebimento de vantagens indevidas direcionadas a Michel Temer, com a intermediação de outro investigado que gozava de grande prestígio nos governos da União passados, o ex-ministro Moreira Franco». Os subornos não beneficiaram apenas elementos da organização, mas também o partido a que pertenciam, o PMDB: «O colaborador Sobrinho assinalou que, no segundo semestre de 2014, coronel Lima o procurou informando que ele deveria fazer doações para a cúpula do PMDB». 

O imóvel da lavagem

No que à lavagem de dinheiro diz respeito, o Ministério Público Federal refere a remodelação do imóvel da filha de Temer, Maristela, e os contratos simulados entre duas empresas, a PDA e uma outra, a Construbase. No depoimento que deu às autoridades, diz a acusação, Maristela garantiu ter gasto 700 mil reais, «sem, contudo, entregar qualquer documentação» que o comprovasse. A mulher do coronel Lima, Maria Fratezi (também colocada em prisão preventiva), foi a responsável pelas obras realizadas no imóvel, pagando sempre em «dinheiro vivo» aos fornecedores de material de construção. 

Há semanas que as autoridades vinham apertando o cerco a Temer e este sabia-o. O jornal Folha de São Paulo chega mesmo a falar de «momentos de amargura antes de ser preso», descrevendo um antigo de Chefe de Estado isolado e que «gastava parte do tempo devorando jornais». Queixava-se que quem ainda se mantinha próximo que o Governo de Jair Bolsonaro e a imprensa não lhe davam a devida atenção. 

A situação piorou bastante para o antigo Presidente com este novo processo, pois já tinha outros nove com o seu nome, dos quais cinco só em 2019 – quando deixou de ter imunidade. Ainda que a sua detenção esteja relacionada com os subornos da usina nuclear, a Justiça brasileira está a investigar outros casos, como o da superfaturação de um outro contrato da ARGEPLAN por serviços de arquitetura e engenharia; um contrato fictício no Porto de Santos, em São Paulo; o jantar no restaurante Jaburu com elementos da construtora Odebrecht; entre outros. 

«A partir da autoridade que é própria dos maiores cargos de nossa República, com possibilidade de nomear diretores de órgãos e empresas responsáveis por contratos públicos de muitos milhões de reais, parece que o objetivo de alguns agentes públicos […] sempre foi o saque do dinheiro público, a lavagem dos recursos ilicitamente obtidos e a distribuição entre os membros dessa ORCRIM [organização criminosa]», lê-se na decisão.

Detenção num bom momento

A detenção de Temer pode ser uma lufada de ar fresco para Bolsonaro – começou a cair nas sondagens -, mas também tem os seus riscos. Por um lado, explica a Folha de São Paulo, permite-lhe voltar a apostar em força na narrativa de que o sistema político está podre, passando a mensagem de ser o único capaz de ‘refundar’ a política nacional. Por outro, permite desviar os holofotes da sua proposta para a reforma da Segurança Social brasileira – deu entrada no Congresso nesta quarta-feira e ontem motivou protestos por todo o país. 

«A Lava Jato tenta desviar a atenção do descrédito em que estava caindo e do fundo de 2,5 mil milhões que negociou com os Estados Unidos. A Força Tarefa [da Lava Jato] não precisa de pirotecnia para sobreviver, precisa de sobriedade», afirmou na quinta-feira o antigo presidente e condenado no âmbito da investigação de corrupção Lula da Silva nas redes sociais. 

Bolsonaro também já reagiu à detenção do seu antecessor: «Que cada um responda pelos seus atos».

Além disso, continua o jornal brasileiro, o impacto da detenção de Temer pode ressuscitar o velho temor da Lava Jato entre a classe política, facilitando o alinhar de posições para a aprovação da reforma ou aumentando a resistência ao Governo – Bolsonaro tem de negociar cada proposta com as várias bancadas parlamentares. A classe política brasileira entende, na sua generalidade, a investigação de crimes como corrupção como uma perseguição política, seletiva e, porventura, espera que Bolsonaro os possa proteger se alinharem consigo. Mas Bolsonaro não o fez com Temer numa semana fundamental para o seu Governo.