Moçambique. Na Beira do inferno

A prioridade, agora, é cuidar dos vivos, mas a tragédia ainda não tem fim nem dimensão anunciaa. Largas centenas de corpos ficaram a boiar nos territórios afetados poderão ser devorados por crocodilos e doenças como a cólera, tifo e malária já espreitam.

Silva Manuel chegou esta sexta-feira à Beira com a mulher e os quatro filhos. Na noite do ciclone Idai, na quinta-feira, perderam tudo o que tinham na aldeia de Matarara, no distrito de Sussudenga, e estão agora, junto com outros desalojados, na escola primária Agostinho Neto. 

Até estarem a salvo, viveram momentos dramáticos. A mulher, Albertina Samuel, estava no interior da casa, com telhado de zinco, acompanhada de três filhos quando foram surpreendidos pela força da água. «Eu estava a cozinhar e de repente a água entrou com força pela casa a dentro. Só tive tempo de pegar nas minhas panelas e nos meus três filhos e fugir». 

Cá fora, já estava o marido com o outro filho, pendurados num cajueiro, onde ficariam três dias até serem resgatados pelas forças sul-africanas.  «Tudo começou por volta das 20 horas de quinta-feira. Um vento e chuva muito forte vinham do rio e só tive tempo de subir à árvore. Quando já estávamos há três horas na árvores, apareceu uma grande corrente de água vinda do outro lado», contou ao SOL. É por relatos como este que os locais dizem que as barragens do Zimbabué abriram logo as comportas na quinta-feira, algo que as autoridades negam. «Quando estávamos na árvore, uma casa arrastada pela água chocou-nos [embateu na árvore onde estavam] e eu caí. Tive sorte pois consegui agarrar-me a outra árvore, tendo depois nadado até à minha família», descreve o pai de família. 

Sem comida e água, só podiam beber a da chuva. Silva Manuel conta que tentou fazer uma canoa com a casca do cajueiro para ver se conseguia arranjar alimentos. Não conseguiu e viu-se impotente para ajudar outras pessoas. «Não consegui salvar alguns pais», numa alusão que não percebemos se era aos seus pais ou se a homens mais velhos da aldeia.

Só na segunda-feira, depois de quatro noites ao relento em cima do cajueiro, acabaram por ser resgatados pelas forças sul-africanas e levados para um acampamento que Silva e a mulher não conseguem explicar onde era. Ontem, chegaram finalmente à Beira, onde dormirão nos próximos tempos no centro de desalojados improvisado na escola primária Agostinho Neto. É difícil dizer com exatidão a idade de Silva e Albertina – nas aldeias ninguém faz o registo de nascimento, não sabem o ano em que nasceram. Ambos devem andar na casa dos 35/40 anos. 

 O ciclone Idai deixou um rasto de destruição de vidas humanas e materiais cujas proporções poderão nunca ser corretamente apuradas. «Para as pessoas que estão na zona de Savane, Dnunda, Sengo e arredores, cuidado, a quinta de crocodilos desabou e todos os crocodilos fugiram. Já existem relatos de ataques e de mortes. Partilhem, é muito importante», era a mensagem que circulava ontem em vários grupos de WhatsApp na zona da Beira. 

Muitos dos cadáveres que boiam nos diferentes rios poderão ser devorados pelos crocodilos, nunca se chegando ao número correto de mortes. Em Moçambique, a carne de crocodilo é consumida como a de vaca em Portugal e são muitos os que fazem criação para venda. Nas últimas horas, surgiram relatos de crocodilos já às portas da cidade da Beira. O rio Púnguè está cheio deles, como se fossem peixes. 

Tudo muito rápido

O ciclone tocou África às 19h de quinta-feira na zona de Ponta Gea. Nos dias anteriores as chuvas torrenciais já estavam a causar estragos. Com a chegada de ventos de 170 km/h, o cenário tornou-se apocalíptico. «A água estava com uma corrente que não vale a pena», descreveu ao SOL um habitante das zonas alagadas, usando uma expressão que  em Moçambique é utilizada quando não há nada a fazer. 

Na cidade, os telhados de zinco voaram como balas, causando estragos nas construções à volta. Nas zonas rurais,  o reconhecimento ainda está por fazer. A estrada principal que liga a Beira ao resto do país, e também ao Zimbabué e Malauí – também duramente afetados pela intempérie, – continua cortada. Só nas províncias de Sofala e Manica estima-se que haja 120 mil pessoas à espera de serem resgatadas. 

Se as zonas rurais são as que causam de momento maior preocupação, na cidade da Beira a vida começa a regressar ao normal apesar dos estragos e de ainda não haver fornecimento de água e luz. 

Esta sexta-feira esteve aberta uma delegação de um banco e lojas de indianos e de ferragens que escaparam ao vento. À noite já houve também alguns restaurantes abertos, nomeadamente uma casa gerida por um casal português, O Farol. Com o pôr do sol, as comunicações tornam-se ainda mais difíceis. Os geradores interferem com as antenas dos telemóveis, inviabilizando as chamadas.

No meio de um lento regresso à normalidade, a Beira acorda todos os dias mais cara. Uma chapa de zinco, dos artigos mais procurados para reconstruir as habitações, custa cinco vezes mais do que há uma semana. Os preços dos hotéis subiram entre 30% a 50%. Os geradores tornaram-se um objeto de luxo: antes do ciclone custavam 7600 meticais (107 euros) e agora custam 25 200 (355 euros). Os garrafões de água de cinco litros desapareceram das prateleiras. Restam algumas garrafas de meio litro, que triplicaram o preço. 

O lixo amontoa-se a cada dia que passa, já que os serviços de recolha não estão a funcionar. Há toneladas de lixo nas ruas, verdadeiras montanhas.

Primeiro os vivos

O Governo moçambicano confirmou ontem 293 mortes, mas nos últimos dias assumiu que esse número poderá chegar aos mil. Nos três países afetados pelo Idai – Moçambique, Malaui e Zimbabué – contabilizam-se 500 vidas perdidas. As autoridades do Zimbabué admitiram já que 120 corpos poderão ter sido levados pela corrente para o país vizinho. Um dos desalojados instalado na escola Agostinho Neto relatou ao SOL esse cenário: «Apareceram muitos, muitos, muitos cadáveres na zona de Matarara».

Graham Taylor é natural do Zimbabué e vive em Moçambique. No regresso para Chimoio depois de se ter certificado de que o filho está vivo na Beira, não conseguiu passar na estrada para lá de Lamego. Antes de abandonar o carro, dormiu nos arredores da localidade. Nas águas, contou ao jornal i ter visto 200 a 300 corpos.

O número de mortes tarda em aumentar porque a prioridade é ajudar os vivos. «Ainda há zonas com acesso cortado que só dá para ir de helicóptero», afirmou ao SOL Júlio Mondlane, coordenador de emergência da Cruz Vermelha moçambicana na província de Sofala. «Os números reais são um desafio quando há pessoas a salvar», afirmou o responsável, estimando que tenham sido resgatadas só em Búzi, Sofala, pelo menos 700 pessoas esta sexta-feira, quase o dobro do dia anterior. Este sábado esperam resgatar mais 900. 

Mondlane explica que o resgate aéreo tem sido possível com os meios de África do Sul e dois helicópteros moçambicanos, que diz terem chegado mais tarde. Os sul-africanos foram os primeiros a fazer o resgate de vítimas e estão a trabalhar 24 horas por dia desde sexta-feira. O resgate marítimo com botes deverá ser reforçado durante o fim de semana, inclusive com a força portuguesa, que já tem dez barcos prontos a começar as operações logo que lhes seja atribuída uma zona. O Instituto Nacional de Gestão de Catástrofes (INGC) diz que esta sexta-feira estavam operacionais 11 helicópteros e 30 barcos. Além da África do Sul, Portugal, Angola, Rússia, Tanzânia e Índia são os países que enviaram ajuda até ao momento. «O objetivo é retirar as pessoas e levá-las para a zona segura que é a Beira».

A distribuição alimentar será um dos maiores desafios nos próximos dias. As Nações Unidas indicaram ao longo da semana que só havia provisões para três dias, mas entretanto estão chegar carregamentos com kits alimentares enviados por diferentes países, também de Portugal. 

Com a comida a escassear, começam também a surgir relatos de negócios menos claros. Graham Taylor, que é empresário, contou que esteve reunido com  membros da direção de uma distribuidora que se recusou a pagar um suborno para ficar com um contrato de fornecimento de alimentos ao Estado. 

As pilhagens a armazéns são outro receio, embora não haja confirmações. «Não acontecem pilhagens porque de momento há contingentes de polícia para protegerem os locais onde estão os produtos», diz Mondlane. O responsável acrescenta que nos locais de distribuição da Cruz Vermelha – onde não é permitido o uso de armas nem às forças governamentais – a gestão é feita envolvendo os beneficiados: «Sabem quem está ou não nos centros de acomodação» para onde estão a ser levados os 400 mil desalojados.

Águas estagnadas são perigo para a saúde

Com as inundações e as águas estagnadas, o perigo de doenças como malária, dengue e tifo aumenta. São doenças transmitidas por vetores como mosquitos, que aumentam nestas condições, e são das principais causas de mortalidade em Moçambique. O aumento dos mosquitos é já notório na zona afetada. 

Como não existe água canalizada, o risco de a população beber água contaminada e surgirem surtos de cólera é outra preocupação das equipas de socorro, que deverão distribuir à população pastilhas purificadoras de água para evitar casos de diarreias. As autoridades acreditam que nas próximas 72 horas vão aparecer muitas pessoas doentes.  O FIPAG (Fundo de Investimento e Património do Abastecimento de Água) está a fazer todos os esforços para repor o abastecimento de água canalizada nas próximas 48 horas.

A Organização Mundial de Saúde já enviou ajuda para o local. Mondlane explica que os piores receios ainda não se concretizaram, mas esta é uma das frentes de atuação da Cruz Vermelha na Beira. Estão no terreno 122 voluntários treinados para zelar pelas «boas práticas de tratamento de água, saneamento, higiene e evitar picadas de mosquitos». Espera-se que sejam colocados 300 voluntários nas restantes zonas afetadas.

Problemas na construção

Uma semana depois da intempérie e numa altura de levantamentos dos danos, é notório que alguns edifícios na Beira resistiram melhor ao ciclone do que outros, mesmo construções mais recentes. Exemplo disso é a destruição da igreja da paróquia Macutti, erigida em 2012 por construtores chineses. Aliás, muitas das estradas construídas por firmas asiáticas ruíram. Os edifícios do tempo colonial acabam por ser os mais bem preservados na cidade, havendo apenas registo de danos na histórica Casa Infante de Sagres. O antigo edifício do BNU, atual Banco de Moçambique; a Casa do Alentejo; a ex-sede do Banco Totta, atual Standard Bank, e a gare dos caminhos de ferro ficaram intactos.

As infraestruturas de comunicação colapsaram. As equipas de emergência tentaram montar telefones por satélite, mas a situação ainda não está regularizada. Portugal enviou um oficial especialista para colaborar no restabelecimento das comunicações, que integra a equipa que chegou à Beira esta sexta-feira. Já este sábado chegarão no segundo C-130 enviado para Moçambique, além dos operacionais que vão reforçar as operações de socorro, dois peritos da EDP, afetos à EDP Distribuição.

Comunidade portuguesa critica demora na ajuda

O secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, chegou a Moçambique na quarta-feira, quando foi revelada a existência de 32 portugueses incontactáveis. O levantamento foi feito em Lisboa e foi entregue em mãos aos serviços consulares na Beira, que durante três dias o Governo português não conseguiu contactar. Esta sexta-feira, 14 das pessoas desta lista já tinham contactado os serviços consulares mas os restantes 18 permaneciam incontactáveis. Tem-se que um português que geria uma exploração agrícola em Búzi não tenha resistido à passagem do ciclone, dado que quase todos os funcionários foram encontrados sem vida.

A comunidade portuguesa na Beira, onde estão registadas 2000 portugueses, tem vindo a criticar duramente a demora não só de Lisboa mas dos serviços consulares. Num documento entregue em mãos ao secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, 51 cidadãos residentes na Beira falam numa «ausência total do Estado português através dos seus serviços consulares». Pedem garantias quanto à sua segurança: «Temos noção de que, popularmente, a nossa comunidade é um grupo alvo, identificado de forma genérica como ‘rico’», lê-se no documento. 

José Luís Carneiro respondeu ao grupo que pedia «proteção militar especializada» que Moçambique é um Estado soberano e que só o podiam fazer se o país o pedisse. Da mesma forma que envio de ajuda para a Beira a bordo de dois C-130 e de um avião comercial fretado pela Autoridade Nacional da Proteção Civil só aconteceu após um pedido formal. O Presidente da República justificou a demora na resposta à comunidade portuguesa com os problemas nas comunicações e energia. «Percebo aquilo que vai no coração dos compatriotas. O que estamos é a tentar aos poucos normalizar a situação», disse.

Dias de pesadelo

Com a chuva a continuar a cair na região afetada, não é certo como se vão desenrolar os próximos dias. As cheias parecem estar a baixar nas bacias de  Búzi e Púnguè, mas há sinais do aumento do nível da água nas bacias do Save e Zambeze. A população parece estar à espera que a situação se resolva. Um homem nas ruas da Beira responde que está a sofrer. Questionado de quê?, devolve «de ciclone». 

As imagens mais pesadas dos últimos dias, porém, vão custar a passar. Numa das noites no hotel, ao subir a pé até ao 11.º andar, o enviado do SOL na Beira encontrou um corpo esquecido há dias no 8.º andar. Um cadáver estendido a agarrar um gato morto. Só esta sexta-feira à noite o corpo foi recolhido.