Fico tristíssima se me dizem: ‘Ana, tens 59 anos e és velha para atriz’

Daqui a uns meses, Ana Bustorff completa sessenta anos. É atriz desde os 17. O embate dos últimos anos tem sido duro, assume. 

Fico tristíssima se me dizem: ‘Ana, tens 59 anos e és velha para atriz’

Há uma «ditadura da imagem brutal» contra as atrizes mais velhas que Ana considera um «terrorismo surdo». Não fala de cor, nem fala de uma sensação. Já lho disseram pessoalmente: tira as os papos dos olhos, corrige as rugas, ou então não tens trabalho. Recusa-se a mudar-se e a, assim, aniquilar a sua essência. «Considero que o meu corpo, a minha voz, as minhas marcas, tudo o que me aconteceu, é uma mais valia e não o contrário», afirma sem meias tintas. E como se supera este momento? Mantendo a sua «verdade» e continuando a procurar a «transcendência» no seu altar: as tábuas do palco. A resiliência parece começar agora a florir: é uma das nomeadas para o prémio de Melhor Atriz Secundária nos Prémios Sophia, a serem entregues amanhã. Um dos papéis que agarrou. Uma coisinha aqui, outra ali. Mas, nos últimos anos, uma peça marcou-lhe a vida e o trabalho: Concerto à La Carte, de Kroetz, um monólogo – que Ana prefere chamar de solo – onde uma mulher sobrevive numa não existência. Limbo para onde os atores que hoje em dia não têm redes sociais são aventados, diz. Durante uns tempos não se rendeu, e, talvez por isso, muitos escreveram – ou pensaram – que estava a viver em Braga ou no Porto. Desde os 30 anos que não mora na Invicta que a viu nascer, ou em Braga onde deu os seus primeiros grandes passos na carreira. Esteve sempre em Lisboa. E foi em Lisboa que se sentou numa tarde desta semana connosco, para abrir o livro numa conversa sem maquilhagem, sem subterfúgios.

 

O que encontra no seu papel em Ruth que pense que pode ter estado por detrás desta nomeação de Melhor Atriz Secundária nos Prémios Sophia?

É uma pergunta muito complicada, eu própria não sei. Mas sei que adorei fazer esse filme, para além de que gosto muito do António Pinhão Botelho, o realizador. O elenco era enorme, e a história maravilhosa, gostei muito de trabalhar com a Leonor Pinhão que também está nomeada e, portanto, para mim foi um prazer, mas foi uma notícia que recebi com muito espanto. Apareço duas ou três vezes. Foi mais um projeto na minha vida de que então estava à espera. 

Tem tido muitos desses papéis assim de acaso na sua vida?

A minha história é um bocadinho feita de acasos, é um facto. Muitas vezes não estou à espera porque habituei-me a não estar à espera que as coisas viessem ter comigo. E aprendi a não criar expectativas em relação ao que pudesse vir. Se criamos muitas expectativas e depois as coisas não acontecem… Na nossa profissão, temos que usar imenso os nossos sentimentos, as nossas emoções, a nossa idade real, e então a rejeição é uma coisa muito difícil de gerir. Acho que temos que saber lidar com isso, porque também muitas vezes da forma como me espantei com trabalhos que não estava à espera que me fossem oferecidos – e por qualquer razão percebia que aquela pessoa tinha um interesse especial em me ter convidado, quanto mais não fosse pela minha energia e pela forma como atuo e como entrego a minha verdade – também tive que lidar com a rejeição. Acredito que se a pessoa não se entregar de alma e coração ao que está a fazer, na vida ou no trabalho, as coisas não são boas.

Sentiu essa rejeição em termos de trabalho nos últimos anos?

Houve rejeição, sim. 

Há mais atrizes da sua faixa etária que falam do mesmo: da rejeição por causa de idade, da falta de papéis que há para mulheres mais velhas – e que, quando os há, são dados a atrizes muito mais jovens. Também sente isto?

Sinto completamente. Acho que há uma ditadura da imagem brutal que não compreendo. Recuso-me a apagar a história da minha vida, acho isso lindíssimo. Até porque foi com as chamadas pessoas mais velhinhas que aprendi tudo. Em cada ruga da cara delas houve qualquer coisa que me ensinou imenso. Portanto acho inacreditável como é que se apaga isso, para mim é uma espécie de um suicídio antecipado. Considero que o meu corpo, a minha voz, as minhas marcas, tudo o que me aconteceu, é uma mais valia e não o contrário. Não sou modelo, não sou futebolista, nem bailarina – e até mesmo os bailarinos hoje trabalham até muito mais tarde, porque essa ideia de que tem que se ser super novo e ginasticado e muito expedito não é assim. As coisas estão cá dentro, na alma. E se saírem daqui têm uma força enorme. Portanto não há uma porcaria de uma plástica ou de uns cremes que se ponham que consigam aniquilar a essência de um ser. E nesse sentido fico tristíssima se me dizem: ‘Ana, tens 59 ano e és velha para atriz, além de que és mulher’.

Já lhe disseram isso, assim, diretamente?

Já, várias pessoas. E nem precisava que dissessem, sei que é assim. Considero isso terrorismo, pelo qual já passei algumas vezes na minha vida. Não gosto nem vou falar de nomes. Mas houve pessoas até com alguma responsabilidade, a partir dos meus 37 anos, que me disseram: ‘Oh Ana, convém começar a cuidares-te mais, convém se calhar tirar os papos, fazer uma coisa ali, outra aqui’. Nunca faria isso comigo! Portanto percebi muito cedo que isto ia ser difícil. Há um fenómeno que se chama síndrome da resignação. E isso acho que tenho muito em mim: habituei-me a defender-me, embora possa ter dificuldades em concretizar algumas coisas na minha vida quando não se trabalha, habituei-me a resignar-me, a esperar pelo meu tempo. E comecei agora a voltar sem procurar, porque nunca fui muito de ir atrás. Acho sempre que não cumpro o suficiente, por isso não chego ao pé das pessoas a dizer ‘O que acha se eu fizer a Ofélia’? Até porque sinto que cada papel, por mais pequenino que seja, pode ser absolutamente genial, maravilhoso, único. Portanto acho que vivo um bocado esse síndrome da resignação. Como é que o supero? Supero-o como estou, com o corpo que tenho, a idade que tenho, com as perdas que tenho de pessoas, de afeto…

Com as marcas da vida.

Exato. Neste momento, por acaso, tenho superado com coisas de teatro que me foram buscar. E as quais, e acho que isso interessantíssimo, me obrigam a uma exposição que adoro enquanto atriz, não no sentido de voyeur. Falo de um solo [Concerto à La Carte] que faço neste momento em que, durante uma altura dessa peça, ando nua quase 20 minutos, e assumidíssima. Nem é uma nudez de ‘ai que bem que eu estou’, é uma nudez fechada, pequenina, triste, com uma corcunda. É uma nudez das que acontece na vida. É a nudez da alma e dos sentimentos, e acho que isso tem que expor sempre e é isso que me interessa – o resto não me interessa nada.

Quanto mais vivemos, mais temos para contar. O trabalho de um ator torna-se mais fácil porque já temos aquele leque de emoções ali à mão, ou é um desafio mais difícil?

É complicado. Torna-se mais desafiante e difícil. Por exemplo, passei a ter mais medo do que tinha do confronto com as pessoas. O palco para mim é essencial, as tábuas são sagradas. É o meu altar onde consigo, como se diz, cumprir todos os passos em que a minha alma se vai entregando. O que procuro sempre quando faço uma coisa é a transcendência, e a partir daí não há nada que nos segure. A única coisa que se pode complicar é se criarmos muito medo em relação ao que se está a fazer. Mas é mágico. A transcendência é algo que não se controla e que traz qualquer coisa tão forte que não tem explicação. Muitas vezes já senti que voei mesmo para outro espaço que não me pertencia e que conquistei, e que agora está guardado comigo. Não sei bem explicar isto assim. 

Fiquei sem perceber se afinal era mais fácil ou mais difícil.

(sorri) Porque realmente é meio contraditório. Sinto cada vez mais que consigo construir a minha verdade, que [o trabalho] é assim, que é preciso um rasgão para abrir isto, como se tira um casaco [simula o gesto] e voar, não ter medo. O medo a mim dá-me antes de começar: ‘Ai meu Deus, não sou capaz, se calhar as pessoas já não me querem ver…’

E a experiência acumulada não trava esse medo?

Acho que essa experiência mostra-nos que é tudo muito efémero, e que isso do que é o bom e o mau, em termos de representação, é muito relativo. Para mim há trabalhos que podem ser uma coisa extraordinária, para alguém ao meu lado pode ser ao contrário. Mas sinto que, e felizmente, os trabalhos que tenho feito em teatro têm sido uma recompensa enorme, que me trouxeram uma luz e alegria indescritíveis. 

Qual é o monólogo de que falava há pouco?

Chama-se Concerto à la Carte, do Kroetz, um alemão de Munique. No fundo é sobre a solidão, sobre as pessoas que não são acontecimento e que não existem. São as pessoas com quem nos cruzamos todos os dias, no supermercado, onde for, que sabemos que se calhar vivem no nosso prédio ou ao lado, mas que olhamos sem ver e que nos dizem passados dez anos: ‘Olha, aquela pessoa apareceu morta, sozinha em casa’. 

Vamos fazer um flashback. Nasceu em Miragaia, no Porto. Quais são as memórias que guarda da infância?

Os irmãos e os primos todos, a corrermos na quinta dos meus avós, e a atirarmo-nos todos para dentro de uma poção, era assim que se chamava. O cheiro da comida da minha avó, as brincadeiras com um chimpanzé que o meu tio tinha…

Vai ter que contar melhor essa história!

Éramos pequeninos, éramos muitos, e aquela família Bustorff era um bocado desalmada. Nós somos só cinco (irmãos), tinha outros tios que tinham dez filhos, por aí. E na quinta juntávamo-nos todos. O meu tio João, irmão do meu pai, era almirante da Marinha e andava num barco, o Pedro Nunes, um barco de guerra. E quando paravam não só vinham os tripulantes de bordo todos comemorar para a quinta dos meus avós com grandes festarolas e almoçaradas como vinha sempre eles, que faziam parte da tripulação, um cão e um chimpanzé, que era o Zé. E o Zé ficava o dia todo a brincar connosco e a fazer maiores disparates deste mundo e do outro. A nossa infância foi muito feérica, onírica, até pelos meus próprios pais, que paravam com os filhos todos para ver o por do sol. Tinham uma entrega… A capacidade de não fugir ao bom e ao mau acho que devo aos pais, assim como a ideia de que o afeto e o amor é que interessam, o resto não interessa nada. Isso fez-me pessoa.

O que faziam os seus pais?

O meu pai era engenheiro, e a minha mãe era formada em químicas farmacêuticas. Ele era lisboeta e conheceu a minha mãe no Porto, ficaram lá e nós nascemos todos lá. Trabalhavam os dois na Fábrica da Cerveja que agora é a UNICER. Deram-nos uma infância até assim um bocadinho irreal, um mundo onde a nossa mãe nos ia comprar madeira para construirmos jangadas, era uma coisa muito livre, simples, ligada à natureza… Muito única, não sei explicar. 

É curioso pais com profissões ligadas às ciências terem-vos dado um lado que associamos mais às artes, especialmente nesses outros tempos.

Acho que tem a ver com aquela família. Lembro-me de sermos muito pequeninos e a minha mãe estava sempre a ler e a contar-nos histórias. Bem, toda a gente deve achar que teve país únicos. Eu sinto que tive, e sinto muito a falta deles. 

Durante a infância já pensava ser atriz? É que na Universidade acabou por entrar em Biologia.

Sim, na Faculdade do Porto, fiz quase o primeiro ano todo. E era o que queria, tinha esse sonho.

Porquê?

Queria ir para investigação. Naquela casa de sonhadores, o meu desejo era ir para Biologia para viver uma coisa do tipo África Minha, ir para uma montanha com uma mochila à espera de ver os gorilas, que lá havia de aparecer um príncipe encantado. Era o meu ideal de vida, como de certa forma continua a ser – acho que vou sempre ter uma alternativa.

Estreou-se em 1977 com os ‘Contos Cruéis’ do Jorge de Sena. Tinha 17 anos. Conte-me essa história.

Foi muito giro. Tinha feito o curso de iniciação à prática teatral na Seiva Trupe, mas estava a estudar na mesma. Achei a maior graça em ter feito o curso, mas depois quando acabou voltei aos meus estudos. Acontece que me telefonam da Seiva Trupe para ir substituir uma atriz, que fazia vários papéis nos Contos Cruéis. E foi até hoje. Fui ficando, acabei por desistir dos estudos, ainda estive no TEP um ano e depois forma-se a companhia no Porto, de que fiz parte, e que passa depois a ser a Companhia de Teatro de Braga, onde ainda estive oito anos antes de vir a Lisboa.

O palco foi a sua escola, então, foi aprendendo a representar. Teve algum padrinho no teatro?

Tive sim. Uma atriz que amo profundamente e à qual dediquei este solo agora, que é a Isabel de Castro, que é uma referência para mim muito importante, até pela sua simplicidade, pela sua história de vida. Esteve muito tempo sem trabalho, teve uma vida muito dura, com muitos filhos para criar, esteve muito doente muito tempo e custou-me sobretudo vê-la na meta final da sua vida. Felizmente, nessa altura não havia tanto esta ditadura das idades, basta vermos as novelas mais antigas para encontrarmos atrizes de todas as idades, o que é formidável. Depois tenho a sensação de que houve algumas atrizes que passaram assim um bocadinho de lado e outras foram muito veneradas, e é um bocado injusto isso porque esta mulher entregou-se de alma e coração a esta vida de teatro, da arte, falta-me a palavra..

Da representação?

Mas sabe que já não lhe chamo representação? Chamo-lhe existência. Existir em cena é o mais importante. Porque quando se representa muito não se está a existir. E o público percebe isso. É mais uma questão de nos entregarmos a essa existência, e garanto que as pessoas que estão a assistir percebem a diferença e é isso que as prende, que as faz ficar e as faz gostar. E a nós também. 

Foi bem recebida quando chegou? 

Com 30 correu muito bem, muito melhor do que esperaria. Foi fácil, não sei porquê.

Já está então a falar da vinda para Lisboa.

Sim. Vim com 30 anos para Lisboa, durante os vintes fiquei no Porto e em Braga. Tive o meu filho com 22, quase 23 anos. No ano seguinte devo ter ido para Braga e fiquei até vir.

Porque resolveu vir para cá, foi uma decisão estratégica?

Sim, não só de carreira, teve a ver também com uma decisão de mudança de vida. Na altura não me apetecia voltar ao Porto, apetecia-me arriscar e perceber o que era Lisboa. Vinha muito cá, pela família do meu pai, mas até foi uma coisa corajosa na altura porque quando vim não tinha dinheiro, não tinha casa, não tinha nada. E felizmente correu bem. Comecei a fazer teatro, depois fiz um casting para um programa de televisão e fiquei, o Desculpem Qualquer Coisinha (1994). Faço também um espetáculo na Cornucópia que foi visto por alguns realizadores, como o Joaquim Leitão e o Edgar Pedro, que gostaram imenso, e foi assim que comecei a trabalhar no cinema e também na televisão. Fiz sempre poucas novelas, fiz mais séries. Depois até houve um momento em que o teatro ficou um bocadinho na prateleira, infelizmente. E agora começou a ser o contrário.

Começou nessa altura a ser reconhecida na rua. Como lida com isso?

Lido bem. Gosto de andar na rua e de falar com as pessoas e, se não for invasivo, acho piada ao contacto com quem nos viu e que gostou de nós. Até tenho muito mais dificuldade em lidar com as coisas no meio que para mim são mais complicadas. Os conflitos, e os egos, isso para mim é muito mais confuso de lidar.

Essa questão dos egos existe muito ou é um mito?

Então não existe! E muito. O ego é transversal a todas as profissões, mas aqui existe e de que maneira, e é destrutivo. Para mim atrapalha-me muito mais do que o reconhecimento de uma pessoa na rua. Aliás, não estando a trabalhar em televisão há muito tempo e só tendo feito umas pequenas aparições, por incrível que pareça, as pessoas continuam a reconhecer-me pela voz e pelo sorriso. 

E gosta de fazer televisão?

Gosto. Primeiro, gosto muito de trabalhar. Depois já fiz projetos giríssimos e há coisas impagáveis que o trabalho na televisão nos trás. Vou contar-lhe uma: ainda agora há pouco estava em digressão com o espetáculo de teatro Sócrates tem de Morrer, com encenação do Mickaël de Oliveira. Estávamos em Guimarães, e eu vinha a sair de manhã do meu quarto e há uma senhora da limpeza que pára o carrinho há minha porta, agarra-se a mim a chorar e diz-me: ‘Felizmente, no dia em que eu me ia suicidar, estava a dar um programa seu e por sua causa eu não me suicidei e estou aqui hoje viva’. Chorei com ela. O que se diz a isto? O que paga isto? E se não fosse a televisão, que chega a tanta gente a tanto lado… Claro que gosto é que seja feita com qualidade. Aí, por exemplo, a exposição do corpo já é uma coisa diferente. Se as coisas forem mal feitas ficam num ponto que a mim não me interessa.

Acha então que estar despida num palco passa uma mensagem diferente de estar despida na televisão?

Completamente. Mas já fiz filmes com nudez absoluta.

O que tem então que existir, justificação do papel?

Do papel e nossa, interior! A pessoa perceber que faz todo o sentido e decidir fazê-lo porque é assim mesmo, e aí não se pode estar com merdas e a descobrir truques como cuecas cor de pele. Não faz sentido – se é para fazer, ou se assume ou não. Meias tintas não é muito comigo. Não gosto do limbo, e sinto-me muitas vezes num limbo na minha vida. Mas isso faz-me confusão. É o tal síndrome da resignação.

Acha que os atores têm que lidar muitas vezes com esse limbo?

Muito, eu sinto imenso. Há atores já com uma determinada idade que deveriam receber um reconhecimento, deveriam ser tratados com um carinho e um colo que não existe. Muitas vezes sente-se, mais no meio televisivo, claro, que realmente o que interessa é a imagem, é as pessoas serem muito bonitas e muito novas, como se essa beleza que transparece por fora – e não tenho nada contra ele, sorte de quem é muito bonito -, mas como se fosse uma capa só. E se tirarmos aquilo, depois o que está? Enquanto estas outras pessoas que digo que precisam de colo e que andam nisto há anos, está lá tudo, vem de dentro para fora e não o contrário. 

Tem redes sociais? Confesso que não fui procurar.

Abri o Instagram por causa do trabalho, mas vejo-me aflita para fazer publicações. Foi-me dito, mesmo, por várias pessoas amigas e outras do meio, que se eu queria ter trabalho – é difícil às vezes fazer só teatro – tinha que estar nas redes sociais. Tenho uma forma de viver um bocado solitária, não sou de estar a aparecer na noite aqui e acolá. E realmente as pessoas ficam esquecidas.

Longe da vista…

É não existência. Passa a viver-se numa não existência. Tenho a noção que muitas vezes não existo. Estava há uns tempos a falar com um amigo que me disse que eu própria podia perceber isso no Google. Realmente lembro-me que antes escrevia Ana e apareciam logo uma série de nomes, mas mal punha o B de Bustorff aparecia o meu nome. Agora tenho que escrever o meu nome até ao fim e pouco ou nada aparece. Virtualmente eu não existo! E essa não existência é muito complicada. Isto fragiliza. 

Acha que hoje se medem os atores em números de seguidores?

Sei de um ator que foi agora preterido para um filme estrangeiro porque o outro ator, que acabou por ficar com o papel, tinha o triplo de seguidores. Os realizadores queriam o primeiro ator, por uma questão de produção do filme. É uma pessoa conhecidíssima, reconhecida até internacionalmente. Foi substituído por outro que não tem, nem de perto nem de longe, a mesma qualidade, mas que tem uma rede social com três vezes mais pessoas. Acho isto horrível. Há um terrorismo surdo, as pessoas são empurradas para uma não existência se não meterem coisas nas redes sociais. As coisas que gosto mesmo publicar – as velhinhas, as rugas – ninguém quer ver! Quando ponho essas imagens ninguém põe gostos, as pessoas estão é interessadas a ver com quem eu estou e por aí. Ao por uma fotografia daquelas, as pessoas também deviam perceber que sou eu a falar de mim e a mostrar o que gosto. Para mim aquele é belo, cada ruga conta uma coisa, acho isto genial. 

Ainda não falámos dos Sapatos Pretos, um dos seus filmes icónicos.

Tinha 37 anos quando o João Canijo me telefonou e me convidou para fazer o filme. Foi muito claro: disse-me que a minha exposição física e emocional teria que ser total, e foi. Foi um trabalho fantástico. O Vítor Norte, o João Reis, a Teresa Madruga, todos os outros atores, estávamos todos imbuídos daquele espírito dos filmes do João, que são sempre duros. E aquilo para mim foi um mergulho na loucura daquela mulher, a Dalila, uma predadora. Atirei-me.

Esse papel mudou a sua vida de alguma maneira?

Mudou. Para já, mudou numa maneira que pensei que fosse ser muito complicada para mim. Há muitas cenas de sexo no filme e muita nudez e pensei que quando fosse para a rua seria complicado e que ia ouvir muitas bocas. E foi muito engraçado porque foi exatamente o contrário: as pessoas que viram o filme e que me abordavam na rua passaram a ter um respeito por mim porque perceberam que aquilo era tão forte, tão brutal. Foi uma interpretação no osso, a rasgar a alma. A seguir ao filme fiquei muito cansada.

Como se sai de um desses papéis, é preciso um período de recuperação?

É. Normalmente tento dormir, ver o mar, apanhar sol e estar com as pessoas que me são próximas que me dão o contrário daquilo: o colo, o afeto, as boas histórias. Até sentir que estou mais leve.

Nos últimos anos voltou para o Teatro de Braga…

Isso não é bem assim. Toda a gente pensou que era assim mas não era. Volto a Braga por convite do diretor da Companhia do Teatro de Braga (CTB), o Rui Madeira, que é meu ex-marido, para substituir uma atriz em Algumas Polaroids Explícitas, um espetáculo que iam levar ao Brasil. Acho que a outra atriz era a Guida Maria, mas não tenho a certeza absoluta. Fui então para o Brasil e depois disso o Rui faz-me um convite para fazer um monólogo, isto há dez anos, tinha 49. Disse-lhe primeiro que não e ele pediu-me para pensar. É primeira vez então que me acontece uma coisa destas, e que assumo à CTB. Tive um sonho com a Isabel de Castro e lembrei-me que eu já era atriz, mas muito miúda, tinha 19 anos, quando a vi no Porto nos Modestos fazer a Música Para Si, outro nome do Concerto à La Carte. É do mesmo autor, só não era tão grande como o solo que faço. Aquilo tocou-me tanto na altura… E na manhã seguinte a ter-me recordado disto em sonhos telefono ao Rui Madeira e digo: ‘Já sei o que quero fazer. O Concerto à La Carte do Kroetz’. E foi assim que recomecei. Mas não estou a trabalhar na CTB, tenho feito, isso sim, alguns projetos com eles. Fizemos também a Oresteia completa, o espetáculo tinha sete horas. Teve assim um peso…

Continuou sempre a morar em Lisboa?

Sim! Há realmente pessoas que me encontram e que me perguntam se estou a morar no Porto ou em Braga. Não sei de onde veio essa suposição, e se deu jeito a algumas pessoas pensarem isso, ou se foi por ingenuidade.

Vai fazer 60 anos em novembro. Está onde gostaria de estar?

Que pergunta difícil… Numas coisas estou, noutras não estou de todo. Estou entre cá e lá. Não sei. Quero continuar a fazer aquilo que acho que me dá vida e não ma tira, que é continuar com esta profissão. Não tenho carreira nenhuma, já estou como dizia a Isabel de Castro: carreiras só das dos autocarros. Quem tem carreira é quem consegue definir a sua vida, agora faço isto, depois faço um Hamlet, no dia seguinte um filme. Acho que muito poucas pessoas se podem gabar de ter carreira. Fui fazendo o que havia para fazer, houve umas coisas que me correram muito bem, outras mais ou menos. A vida é isso mesmo. Por um lado, acho que poderia estar numa fase da minha vida talvez mais realizada talvez, não sei explicar. Mas a realização também é um conceito… às vezes uma pequenina coisa realiza-nos tanto, é só uma questão de estar disponível… Bem, qual era a pergunta?

Se gosta do sítio onde está.

Gosto, gosto. Gosto tanto de gostar… Gosto tanto que tenho de gostar do momento em que estou na minha vida.