Há 19 anos, o mesmo cenário. Missão marcou os fuzileiros

No ano 2000, a região da Beira estava devastada pelas cheias como está hoje. Em 24 horas, a força de reação imediata com 45 fuzileiros avançou para Moçambique. Socorreram 16 mil pessoas.

Levantavam-se às quatro da manhã para estarem dentro de água às cinco. Com dois homens em cada bote, percorriam o rio Save ao longo de 70 quilómetros, primeiro à procura de pessoas para garantir socorro e alimentos, depois para assegurar transporte para zonas mais seguras. Por fim, quando as águas baixaram, começaram a distribuir sementes e ferramentas para que pudessem recomeçar.

Foi assim ao longo de um mês, o tempo que durou a missão da força de reação imediata enviada para socorrer a população moçambicana nas cheias do ano 2000. Mal aterraram em Vila Franca do Save – o setor atribuído aos fuzileiros portugueses, a 400 quilómetros a sul da cidade da Beira –, tiveram uma perceção ainda maior da urgência. Olhavam para uma planície e só viam água, destruição, casas submersas, sofrimento.

Dezanove anos depois, as imagens tornam-se de novo vivas com os relatos da tragédia em Moçambique. «O sofrimento humano dá-nos uma motivação extrema. Se tínhamos 20 botes para navegar, eram esses 20 botes que diariamente iam para dentro de água completamente carregados de apoio humanitário, no limite. Sabíamos que todo o apoio que pudéssemos dar ia fazer a diferença», recorda o comandante Mendes Afonso, na altura 2.º comandante da força com 45 fuzileiros enviada para apoio a Moçambique.

O estado de prontidão faz parte da natureza desta componente das Forças Armadas e em 24 horas foram ‘projetados’, o termo militar que se tornou a ouvir nos últimos dias. Na altura, os homens seguiram num voo comercial da TAP até à Beira e o material foi a bordo de um C-130, numa missão com contornos semelhantes à que partiu esta semana para Moçambique e que na altura mobilizou também elementos da Proteção Civil, Cruz Vermelha e Bombeiros. «A nossa projeção para Vila Franca do Save foi num avião das Nações Unidas que aterrou numa pista de terra batida. Tivemos de descarregar tudo a braços para o local onde ficámos acampados. Sabemos que cada hora que demoramos é uma hora em que não estamos a chegar às pessoas», continua Mendes Afonso.

Seguiam com autonomia para uma operação de 30 dias, sem saber ao certo quanto tempo ficariam. Levaram tendas, rações de combate, água engarrafada, carvão ativo para filtrar a água do rio que usavam para a higiene pessoal. Durante as quatro semanas no terreno seriam abastecidos por helicópteros sul-africanos e americanos, que regularmente forneciam mais kits alimentares para distribuir à população e combustível para manterem os botes dentro de água.

A gestão das prioridades torna-se uma das principais dificuldades numa missão deste género, diz o comandante. Feito o reconhecimento, foi preciso planear onde iriam diariamente, de forma a chegar ao maior número de pessoas. Ao longo do curso do rio, era comum aparecerem grupos a pedir-lhes que parassem de novo num determinado lugar e nem sempre podiam fazê-lo.

Lembra-o Mendes Afonso mas também o sargento Moreira Teixeira, patrão de bote na força de reação imediata do ano 2000. «São situações alarmantes. A nossa missão é tentar salvaguardar a vida humana. Custa ir ao longo do rio e ver pessoas a acenar com fome, mas se parássemos no mesmo ponto se calhar não saíamos de um espaço de 5 a 10 quilómetros e tínhamos  70 km para percorrer.»

Também o cabo Marco Bernardo  não esquece os primeiros contactos. «Encontrámos aldeias completamente isoladas, famílias separadas. Quando vieram as cheias, os pais estavam de um lado e os filhos de outro, e tentámos fazer o reencontro. Apesar de ter sido uma missão curta, foi muito intensa. Tínhamos a consciência de que quanto mais tempo demorássemos, mais impacto aquela situação ia ter na população».

 

800 kg de alimentos por bote

Diariamente cada bote distribuía 800 kg de alimentos num setor que ia de Vila Franca do Save até Nova Mombone. Com os barcos de borracha carregados, sentavam-se em cima das sacas de farinha. «Ninguém queria ficar em terra», lembra Moreira Teixeira. A operação dentro de água era exigente, mas não havia outra forma de se deslocarem na região completamente alagada. Além do calor e humidade, que obrigava a interromper a navegação pela uma da tarde quando os termómetros chegaram a tocar os 46ºC, o rio era um caudal de lama com troncos, árvores submersas, destroços – obstáculos que nem sempre viam em antecipação. 

Ao longo das quatro semanas recolheram corpos, mas essa era uma responsabilidade que estava entregue às autoridades locais, explicam. A articulação num cenário assim torna-se um bem tão essencial como os meios.

Nunca houve um balanço final, mas estima-se que 700 pessoas tenham perdido a vida nas cheias do ano 2000, as mais violentas antes da situação que se vive atualmente no país. Cerca de 400 mil pessoas terão ficado desalojadas.

Para Mendes Afonso, Moreira Teixeira e Marco Bernardo, que hoje continuam ao serviço da Marinha no ativo, foi a primeira missão no exterior e deixou marcas fortes. «Tal como vemos agora, as pessoas há 19 anos juntavam-se nos sítios mais altos e criavam-se aglomerados. Se nós não chegássemos, mais ninguém chegava. Encontrámos pessoas em telhados, árvores, em todos os locais onde não houvesse água. Estivemos lá durante um mês e nas primeiras duas semanas esse cenário de encontrar pessoas em sítios difíceis manteve-se. Se não fossemos nós a chegar e a levar-lhes comida, não comiam. Bebiam a água que havia, a água do rio, mas num cenário destes a água tem lá tudo, é escura, contaminada».

Muitas vezes, acabavam por partilhar a ração de combate. «Principalmente para os militares que tinham filhos da idade das crianças que nos vinham pedir comida, era uma situação complicada. Tínhamos um pacote de bolas de água e sal e, quando saímos para a distribuição, as bolachas eram dadas às crianças, ninguém conseguia estar a comer com os miúdos a olhar. O fator humano é transcendente num momento destes», sublinha Mendes Afonso.

Encontrar pessoas isoladas, algumas completamente nuas ao fim de dias à chuva nas zonas mais remotas é outra das imagens difíceis de apagar. «Se calhar a única coisa que tinham antes era uma vestimenta rudimentar, uma túnica, e até isso deixaram de ter. Muitas vezes dávamos-lhes as nossas t-shirts para se cobrirem. Muitas vezes queríamos dar mais e não conseguíamos», lembra Moreira Teixeira, que não esquece o dia em que encontraram uma criança que teria a idade da sua filha, despida e a tremer. «É difícil. Há muitas histórias que nos ficam, umas mais tristes, outras menos, mas todas com um certo grau de infelicidade. Muitas casas são construídas em tijolo cru, outras palhotas. São pessoas que perdem o pouco que têm, porque não têm muito».

 

A primeira missão com GPS

Quase duas décadas depois, acreditam que a principal diferença em termos operacionais será nas comunicações disponíveis, mesmo que nestes primeiros dias tenha havido limitações.

No ano 2000 levaram um telefone por satélite, o telemóvel não era tão comum. Ainda assim, a missão em Vila Franca do Save foi a primeira em que foi usado GPS, que na altura estava em testes internos na Marinha. Uma ajuda que se revelou preciosa, explica Mendes Afonso. «Tínhamos acesso à cartografia mas não servia para nada porque havia povoações completamente tapadas pela água, não fazíamos ideia onde estávamos pelos mapas e o GPS foi uma mais-valia fundamental.»

Regressaram com o sentimento de que tinham feito o máximo e acreditam que os colegas que esta semana partiram para Moçambique vão preparados para o que é sempre uma missão exigente. «O essencial é que se apoiem uns aos outros e façam o melhor possível», diz Marco Bernardo.

O contributo que deram há 19 anos foi lembrado na quarta-feira pelo ministro da Defesa Nacional pouco antes de o C-130 descolar da base aérea de Figo Maduro. «Naquela ocasião os fuzileiros portugueses distribuíram 150 toneladas de alimentação, socorreram mais de 16 mil pessoas com necessidades de assistência médica, salvaram incontáveis vidas. A partida desta força de reação imediata hoje é uma demonstração da prontidão de Portugal para repetir aquilo que se fez em Moçambique no ano 2000 e estou seguro de que os militares que hoje partem terão a mesma determinação e o mesmo brio», disse João Gomes Cravinho.