Ucrânia. Padeiros no jogo da morte!

Passou-se no país que é adversário de Portugal no Europeu: uma equipa de futebol da Padaria n.º 1 de Kiev afrontou o orgulho nazi e foi dizimada.

Em 1962 já tinha dado um filme: Terceiro Tempo. Em 2012 deu outro: Match. Ambos russos. Ou melhor: o primeiro foi soviético. A trama é idêntica. O de 1962, dirigido por Yevgeni Karelov, passou pelos olhos de mais de 30 milhões de espetadores e serviu de influência para o célebre Fuga Para a Vitória que metia um incrível pontapé de bicicleta de Pelé e uma inverosímil defesa de um penálti por parte de Sylvester Stalone. Pois, pois: há limites para tudo até na infinita magia do cinema. O de 2012 criou atritos. As relações entre russos e ucranianos já viram melhores dias (geralmente sempre melhores para os russos) e ter russos a interpretar acontecimentos vividos em Kiev no tempo do Reichskommissariat Ukraine, ou seja, durante a ocupação nazi do território, logo em vésperas de se iniciar a fase final do Campeonato da Europa, dividida entre a Ucrânia e a Polónia, valeu críticas profundas. Ainda por cima porque o realizador, Andrei Malyukov, não se coibiu de deixar subentendido que havia um certo sentimento pró-nazi e antissoviético por parte dos ucranianos nessa fase da II Grande Guerra que mediou entre 1941 e 1942.

Enfim, vale a pena ver o filme, quem puder encontrá-lo, mas a despeito do colorido muito especial, quase próprio de desenho animado, não encontrará nele a densidade dramática que se viveu no dia 9 de agosto de 1942. O dia em que se disputou aquele que ficou para a lenda como O Jogo da Morte!

Fábrica de Pão n.º 1

Estádio Start. O lugar infame.

Foi o escritor russo Lev Abramovich Kassil, natural de Prokovskaya, nas margens do Volga, que trouxe pela primeira vez a público detalhes do que aconteceu naquele dia em Kiev. Era um homem que gostava de futebol e já tinha publicado, em 1936, uma novela que acabaria nas telas do cinema: O Guarda-Redes. 

Após a ocupação nazi, todos os clubes e organizações soviéticas foram dissolvidas, entre elas o Dínamo de Kiev e o Lokomotiv de Kiev, emblemas maiores da capital da Ucrânia. Mas, no final de 1941, os alemães autorizaram o aparecimento de novos clubes ucranianos, decisão que valeu as tais acusações de colaboracionismo por parte do governo do Kremlin. Georgi Shvetsov, treinador e jornalista, aproveitou para formar o Rukh (Movimento), tentando recrutar os melhores antigos profissionais da região. Ora, Shvetsov tinha fama de ser simpatizante nazi, pelo que os ex-jogadores do Dínamo, entre os quais o popular guarda-redes Trusevich, preferiram juntar-se no Fábrica de Pão n.º 1, que ainda por cima garantia acesso a bens alimentares para as suas famílias. Claro que ter um clube chamado Padaria não provocava grandes comichões no sangue dos possíveis adversários, por muita qualidade que tais jogadores tivessem, e tinham-na. Por isso, adotaram o nome de Start.

Foi com esse nome que, durante os meses de junho e julho de 1942, defrontaram o Rukh, clubes militares húngaros, um grupo de artilharia alemã e a equipa dos caminhos de ferro alemães. Ganharam os jogos todos!

Vamos e venhamos: nada pior podiam ter feito para irritar aquela soberba tão nazi e ariana. Havia que colocar os atrevidos no seu devido lugar e essa tarefa foi atribuída ao Flakelf, equipa formada pela elite futebolística da Werhmacht estacionada no território o que, aqui para nós, não significava lá dessas coisas. O dia 6 de agosto foi fixado para data da lição e o Start limitou-se a golear os seus tão braquicéfalos como trapalhões adversários: 5-1.

Da irritação, os nazis passaram à fúria. E à batota. Três dias mais tarde, apresentaram-se em campo reforçados com Lev Gundarev, Georgi Timofeyev e Olexander Tkachenko, antigos profissionais ucranianos. Diz Kassil que o Flakelf chegou a ter, durante largos minutos da segunda parte, 14 homens em campo. De nada lhe serviu: nova derrota – 3-5. A atmosfera no final era pesada, mas os adversários ainda confraternizaram com umas garrafas de vodca.

No dia 16 de agosto, no final do Start-Rukh (8-0), a Gestapo pôs fim à insolência da equipa imbatível. Oito jogadores do Start foram presos depois de terem regressado ao seu trabalho na padaria e enviados para o campo de concentração de Syrets. Três deles, Trusevich, Klimenko e Kuzmenko foram executados em fevereiro de 1943. Não se brincava impunemente com os soldados de Hitler.