O homem ao lado de quem toda a Nova Iorque queria sentar-se ao jantar

John Richardson, historiador da arte, crítico e amigo de Picasso, morreu aos 95 anos, antes de conseguir concluir a sua monumental biografia do pintor espanhol.

«Depois de a Guernica lhe ter sido devolvida, Picasso organizou-lhe um tour pela Escandinávia e Inglaterra. Chegou a Londres a 30 de setembro de 1938, e foi exposta nas New Burlington Galleries, onde eu, um rapaz de 14 anos, fiquei assombrado ao vê-la. Um encontro com Picasso mais tarde transformou-se em amizade, que haveria de inspirar uma biografia». Era com estas palavras acerca da sua história pessoal que John Richardson terminava um artigo detalhado sobre a Guernica para a New York Review of Books. O historiador e crítico de arte, amigo e biógrafo de Picasso (mas também de Dora Maar, Braque, Léger e Jean Cocteau) morreu dia 12 de março, aos 95 anos, antes de ver publicada a sua opus magna, essa imponente biografia do criador espanhol da qual, até à data, foram publicados três volumes. O quarto volume está previsto, após sucessivos adiamentos, ser posto à venda em dezembro deste ano.

Nascido em Londres a 6 de fevereiro de 1924, John Richardson foi o fruto do casamento tardio do seu pai, um antigo oficial do Exército britânico que combateu no Sudão e participou na Segunda Guerra dos Boeres, na África do Sul (1899-1903), como diretor de mantimentos. Wodehouse Richardson casara Clara Pattie Crocker, de metade da sua idade, quando tinha já perto de 70 anos. Tiveram ao todo três filhos, mas Wodehouse faleceu quando John tinha apenas cinco anos. Para aliviar o fardo da mãe, o pequeno foi enviado para um internato, onde foi profundamente infeliz. Acabaria por descobrir os encantos da arte, onde passaria a procurar refúgio, mudando-se depois para uma escola artística cujos diretores o puseram em contacto com a arte moderna.

Viria a desenvolver uma autêntica «obsessão por Picasso» e o tal encontro com a Guernica, quando tinha 14 anos, fê-lo não ter dúvidas acerca do caminho que queria seguir. O obituário que o Telegraph lhe dedicou menciona um episódio revelador: «Numas férias escolares, na livraria Zwemmer em Charing Cross Road [a comprida rua de Londres perto de Covent Garden onde se concentravam os alfarrabistas], reservou um exemplar da mais recente – e melhor – gravura de Picasso, Minotauromaquia. Mas a mãe recusou-se a emprestar-lhe as 50 libras que custava, dando um raspanete a Mr. Zwemmer e ameaçando denunciá-lo à Polícia por tentar extorquir às crianças as suas mesadas. Cópias da gravura desde então atingiram em leilão valores até 1,5 milhões de dólares».

Durante a II Guerra Mundial, John concorreu à Slade School, a reputada academia de artes, que na altura se encontrava instalada em Oxford por causa dos bombardeamentos. A estadia não durou muito: aos 18 anos era chamado para se juntar à Guarda Irlandesa para participar na Guerra. Uma doença levá-lo-ia rapidamente de regresso a Londres onde, numa festa, conheceu o historiador da arte e colecionador Douglas Cooper, a quem o pintor Francis Bacon chamava «essa mulher traiçoeira».

Alguns anos mais tarde, em 1952, Richardson mudava-se para o Sul de França para viver com Cooper no palácio, Château de Castille, que este adquirira perto de Avignon e que viria a transformar no seu museu privativo dedicado ao cubismo.

«A minha amizade com Picasso data do final de 1953. Eu tinha-me mudado pouco tempo antes para a Provença, onde partilhava a casa com um dos velhos amigos do artista, o colecionador inglês Douglas Cooper», contava Richardson na Introdução do primeiro volume da sua biografia de Picasso. «Íamos os dois de carro para Vallauris, onde Picasso vivia numa moradiazinha feia, chamada La Galloise, escondida atrás de uma garagem. O apartamento em cima da garagem pertencia a uma dançarina velha e maluca que odiava o pintor e costumava ir à varanda gritar que era ela, e não Picasso, quem vivia ali. Para deleite dele, ela punha cartazes para esse efeito – cartazes esses que afastavam qualquer um que quisesse encontrar La Galloise. Só os que sabiam isso o conseguiam encontrar».

Graças a essa proximidade, Richardson haveria de compensar e bem o facto de a mãe não lhe ter emprestado dinheiro para comprar a Tauromaquia. Numa entrevista concedida há dez anos à Artinfo, revelou: «Picasso foi extremamente generoso comigo e deu-me uma quantidade de desenhos, gravuras e outras coisas, as quais quase todas tiveram de ser vendidas para pagar o livro [a biografia]. Não foi tanto por causa das ilustrações – embora os custos dos direitos de autor e royalties seja elevado – mas a pesquisa, as viagens, os livros».

Richardson e Cooper haviam caído nas boas-graças do génio espanhol com a oferta à sua amante, Jacqueline, de um xaile Dior feito a partir de uma capa de toureiro que ela continuaria a usar trinta anos volvidos. Ainda assim, o biógrafo fazia a ressalva de que a amizade não se restringia à troca de presentes: «Picasso gostava de visitar a casa [Château de Castille, onde o casal tinha a sua coleção de pintura cubista] e de ver a sua obra perto dos Bracques, Légers e Grises do mesmo período». Além disso, o palácio «era convenientemente perto de Nîmes e Arles, onde picasso ia com frequência às touradas na arena romana. Depois das corridas ele trazia o seu grupo pra jantar. Uma vez ou duas tentou comprar Castille».

Na década de 60, Richardson mudou-se para Nova Iorque, para liderar a leiloeira Christie’s. Colaborou ainda com várias galerias de arte moderna na metrópole americana e escreveu para as mais prestigiadas publicações, como a Vanity Fair, a New Yorker e a New York Review of Books.

No entanto seria com a biografia de Picasso, que teve na génese um livro que Richardson imaginara dedicar aos retratos de Picasso, que atingiria a aclamação internacional.

O primeiro volume, que abrangia os primeiros 25 anos (1881-1906) da vida e obra do pintor, foi publicado em 1991; o segundo volume (O Pintor da Vida Moderna), dedicado aos anos 1907-1917, saiu em 1996; o terceiro volume – Os Anos Trunfantes: 1918-1932 – viu a luz do dia em 2006. Questionado se conseguiria ‘encaixar’ o mais de quarenta anos da vida de Picasso no quarto volume, Richardson respondeu à Artinfo: «Sim e não. Tenho 84 anos, por isso tenho de ter em conta a minha idade. Há muito trabalho para fazer e talvez eu não viva o suficiente para o terminar. Tenho problemas de visão, por isso preciso de muita ajuda», revelou. Quanto ao tempo de vida, os seus receios eram fundados. Quanto à ajuda, não terá tido dificuldade em encontrá-la uma vez que Richardson era, segundo a revista W, «o homem ao lado de quem toda a Nova Iorque queria sentar-se ao jantar».