O episódio surge quase no final de Hoje Deu Entrada no Hospital, um livro tocante e corajoso sobre o dia-a-dia de um neurocirurgião e os casos mais ou menos desesperados que lhe aparecem.
Filho de um importante advogado, durante mais de três décadas Marsh trabalhou em hospitais públicos e numa clínica privada em Inglaterra, mas também ajudou pro bono amigos médicos na Ucrânia e no Nepal, país onde continua a operar e a dar formação mesmo depois de ter entrado na reforma.
Foi dos primeiros a fazer uma operação arriscada em que se serra o crânio e se limpa o cérebro do paciente com ele acordado – à medida que remove as parcelas doentes, o médico vai fazendo perguntas para saber se o procedimento está a afetar as suas faculdades. Faz-vos lembrar Hannibal Lecter?
Nenhum desses casos, porém, é tão impressionante como esse que se conta quase no final do livro – e que não tem a ver com a especialidade clínica do autor. Apesar de elegantemente vestido, o homem do sobretudo castanho sofria de uma doença terrível, repugnante e fatal. «Não podíamos fazer nada para o ajudar, era simplesmente uma questão de esperar que morresse. E ele estava evidentemente acordado e consciente do que lhe acontecia, a morrer aos poucos, envolto no cheiro horrível das próprias fezes. Deve ter reparado nas expressões involuntárias nos nossos rostos, ao entrarmos no quarto, ganhando coragem para enfrentar o cheiro pestilento». Hoje Marsh recrimina-se por não ter conseguido lidar melhor com a situação: «Sei que desiludi este homem e que fui um cobarde».
O tom dominante é de pessimismo, mas este apaixonante livro de memórias também tem páginas luminosas. As minhas favoritas são aquelas em que Marsh conta como começou a praticar carpintaria e se dedicou a restaurar com as próprias mãos uma casa decadente que outrora pertencia ao guarda da comporta ali próxima. Limpou o jardim, plantou novas árvores de fruto, substituiu as canalizações e até fez novas janelas com requintados arcos ogivais. «Com a ajuda de um colega e amigo ucraniano, arranquei as janelas velhas e instalei cuidadosamente as novas antes de ir para o Nepal». Para quê preocupar-se com uma casa abandonada quando podia passar a reforma confortavelmente instalado numa casa nova? Talvez tenha sido o seu instinto de médico a falar mais alto. No fundo, recuperar aquele «edifício humilde e bonito» – e maltratado – não era assim tão diferente de curar uma pessoa afetada por uma doença grave, um combate nobre contra as forças cegas do declínio, da morte e do esquecimento.