A história de Catarina, a mãe que doou o corpo até ao limite

Salvador já respira sozinho. Família e amigos despediram-se ontem de Catarina, a jovem mãe que não resistiu a uma crise de asma e esteve três meses ligada às máquinas para que o filho pudesse viver. Médicos que lideraram o caso relatam ao SOL como vigiaram o segundo bebé milagre português nas últimas semanas. «É uma…

1700 gramas, 40 centímetros, 31 semanas e seis dias. Salvador nasceu pequenino, um grande prematuro na gíria médica, mas bastou um dia para começar a respirar sozinho. Ontem deixou de estar entubado e mostra uma boa evolução, informou o Hospital de S. João, onde o bebé nasceu na madrugada de quinta-feira. Catarina Sequeira, a jovem mãe de 26 anos que não resistiu a um ataque de asma em dezembro, foi mantida ligada às máquinas durante três meses para que o filho pudesse viver. O funeral realizou-se ontem em Crestuma, a vila onde Catarina cresceu e onde descobriu, em criança, a paixão da canoagem. 

O segundo caso de uma gestação em morte cerebral registado em Portugal foi conhecido há uma semana, quando a mãe de Catarina veio a público falar sobre a situação da filha. A história foi inicialmente contada num jornal local, o Gaiense, e desde então Maria de Fátima Branco tem recordado a filha que perdeu como uma jovem responsável, que nunca se queixava e vivia o momento. Catarina e o companheiro Bruno tinham arranjado casa há pouco tempo e preparavam-se para receber o primeiro filho. Pouco antes do Natal, a jovem caiu inanimada na sequência de um ataque de asma, doença com que vivia desde criança mas que nunca tinha sido um impedimento, nem no desporto. Uma hipoxia severa (privação de oxigénio), revelar-se-ia fatal. 

O quadro de morte cerebral foi declarado no Hospital de Vila Nova de Gaia no dia 27 de dezembro. Grávida de 18 semanas, a decisão de manter Catarina em suporte artificial para permitir a gestação do filho foi inicialmente objeto de parecer da comissão de ética do Hospital de Gaia. No final de janeiro, foi pedida a transferência para o Centro Hospitalar Universitário de S. João, explicaram ao SOL os médicos que lideraram o caso. Tinham todas as especialidades necessárias – Medicina Interna, Obstetrícia e Neonatologia – no mesmo edifício, o que dava garantias para assistir um caso como este. 

No S. João, foi feito o reenquadramento clínico, juntando especialistas de medicina intensiva, obstetrícia, neonatologia e bioética. «A intervenção num ser com diagnóstico de morte cerebral só se legítima em função de um bem a proteger, desde que o próprio se não tenha inscrito no RENNDA (Registo Nacional de Não Dadores) como não dador, o que se configurou nesta situação», detalharam ao SOL, numa resposta conjunta por escrito, Teresa Honrado (médica especialista em medicina intensiva), Hercília Guimarães (médica especialista em neonatologia), Marina Mouco (médica especialista em obstetrícia) e Filipe Almeida (presidente da Comissão de Ética e responsável pelo serviço de humanização do S. João). «Havia um ser humano vivo, necessitado deste corpo materno para a sua sobrevivência. Sendo que esta mãe, em tempo oportuno de o fazer, não se declarou não dadora, estava eticamente legitimada a intervenção de suporte para manutenção das funções vitais em benefício do filho». 

A avaliação clínica do feto é também incontornável numa situação destas. Estava tudo bem, não havia diagnóstico de problemas clínicos graves, contexto a que se juntou «a circunstância de o pai desejar também a continuação da intervenção médica, no sentido de se poder alcançar a viabilidade do filho», explicam os médicos. E assim a gravidez prosseguiu. O pai viria a acompanhar o processo desde o início, partilhou a equipa logo na quinta-feira, em conferência de imprensa. Bruno esteve com o filho desde o parto e neste momento, informou o hospital, é o responsável único e direto pela criança.

Reuniões semanais com o pai

O caso envolveu a Comissão de Ética, a equipa clínica (médicos, enfermeiros e assistentes operacionais) da Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente da Urgência  (UCIPU) do Serviço de Medicina Intensiva. Juntou-se uma equipa do Serviço de Obstetrícia e a equipa do Serviço de Neonatologia, que incluiu médicos, enfermeiros e psicóloga. Durante os quase 60 dias de internamento da Catarina no S. João, houve reuniões semanais de acompanhamento em que participou sempre o pai do bebé.

Ter havido um caso de sucesso em Portugal em 2016, o nascimento de Lourenço Salvador no Hospital de S. José, «contribuiu para a confiança da equipa», reconhecem os médicos. Ainda assim, cada caso é diferente e a experiência com Sandra Pedro, mantida ligada às máquinas durante 107 dias, não podia ser transposta para as decisões a tomar em relação a Catarina e ao filho.

A nível mundial existem apenas cerca de 40 gestações com a mãe em morte cerebral conhecidas. Gonçalo Cordeiro Ferreira, pediatra e presidente da comissão de ética do Centro Hospitalar de Lisboa Central, que há três anos deu luz verde ao caso de Lourenço Salvador, sublinhou durante a semana ao jornal i a raridade deste tipo de quadros, que faz com que existam muito poucas orientações. É um processo tecnicamente muito exigente. Com a mãe em morte cerebral, quadro em que ocorreu uma perda completa e irreversível das funções cerebrais, o suporte de vida tem de garantir o funcionamento de órgãos como coração e dos pulmões mas também um equilíbrio hormonal e nutricional que torne possível que o bebé continue a desenvolver-se. A monitorização é feita 24 horas por dia e o ambiente propício ao desenvolvimento do bebé é garantido por medicação.

«O corpo da Catarina e o seu filho estiveram sempre acompanhados e vigiados permanentemente. Para além de toda a monitorização, vigilância  e tecnologia próprias de uma Unidade de Cuidados Intensivos, essenciais ao suporte de órgãos, é de realçar o acompanhamento humano que foi feito a este bebé por parte da equipa de enfermagem dos Cuidados Intensivos. A preocupação de falar com o bebé e colocar música junto à barriga da mãe são exemplos deste cuidado extremo para que o bebé fosse permanentemente estimulado e não se sentisse sozinho», relatam os médicos.

Levar a gestação até às 32 semanas, a barreira a partir da qual o nascimento do bebé comporta menos riscos e passa a ser considerado um prematuro moderado, era o objetivo da equipa. Na reunião da última quarta-feira, tudo apontava nesse sentido e o parto foi marcado para sexta, o dia em que se atingiria essa etapa. Dificuldades na madrugada de quinta-feira obrigaram a antecipar a cesariana de urgência. Salvador nasceu às 4h32. Um momento de stresse para a equipa, admitem os médicos, sublinhando, porém, que são todos profissionais com experiência em momentos críticos. Numa situação como esta, «a manutenção de uma qualidade clínica de excelência convive com a alegria de tornar a vida possível em situações extremas», dizem.

Bebé deve ficar um mês no hospital

Salvador nasceu bem, com o peso adequado ao tempo que passou na barriga da mãe. Atualmente já há casos de sobrevivência de bebés que nascem às 21 semanas, ainda que raros. As hipóteses aumentam a cada dia, mas é sempre preciso pesar os riscos. «Apesar de tudo conseguiu-se aquilo que era o objetivo primordial, levar esta gravidez tão longe quanto possível perante uma ponderação dos riscos aceitáveis», disse na conferência de imprensa de quinta-feira Filipe Almeida.  

O suporte respiratório é uma medida habitual nos grande prematuros. Por agora, Salvador, que já não precisa de ventilação mecânica invasiva, continuará nos cuidados intensivos neonatais, onde deverá permanecer no mínimo três a quatro semanas, adianta a equipa. «Na prematuridade, as maiores preocupações são relacionadas com potenciais alterações no desenvolvimento psicomotor, que pode cursar com algum atraso na aquisição das várias etapas do desenvolvimento. A equipa multidisciplinar que no nosso Serviço de Neonatologia acompanha estes bebés e as suas famílias desde o nascimento, adotando programas individualizados de intervenção precoce, permite minimizar estas potenciais sequelas». 

Teresa Honrado, Hercília Guimarães, Marina Moucho e Filipe Almeida reconhecem que este caso, por ser uma realidade desconhecida para todos os que estiveram envolvidos, teve uma carga emocional diferente, mesmo estando preparados para lidar com situações súbitas e inesperadas que envolvem a perda de entes queridos, como é o caso de uma morte cerebral.  «Inicialmente a ansiedade, a preocupação e a incerteza quanto à evolução da situação e ao seu desfecho, eram sentimentos frequentemente partilhados por toda a equipa. O empenho, a responsabilidade, o respeito, a partilha e a maturidade dos profissionais permitiu que se mantivesse o equilíbrio emocional necessário para a criação de um ambiente adequado ao desenrolar de todo o processo. A carga emocional foi gerida com a tranquilidade, o profissionalismo e dedicação, estabelecendo-se uma empatia importante e significativa com o pai, a família materna e com o Salvador». 

A forma como encaram a missão que têm diariamente muda depois de um caso como este? Para os médicos, o difícil desafio que foi o nascimento do Salvador termina com uma sensação de plenitude e de realização pessoal e profissional. «É um estímulo para continuarmos», responde a equipa, que acredita que, ao mesmo tempo, fizeram o que deve ser feito sempre na medicina. «O desfecho foi apenas o corolário do cumprimento de uma medicina que se ocupa da vida e do viver humano. A vitória da medicina está certamente neste filho que ajudou a viver mas também no respeito absoluto com que se lidou com o corpo de uma mãe que se não quis escusar a doar-se ao filho até ao limite do seu viver biológico».