Um governo em família…

Há empresas em Portugal que têm como regra a não admissão de empregados com um grau de parentesco próximo de outros já nos quadros. Se isto acontece no setor privado, por maioria de razão deveria ser uma regra na administração pública, no setor empresarial do Estado ou no Governo.

Há vocábulos que emergem inesperadamente no espaço público, empurrados por uma determinada realidade substancial, e que ficam depois a pairar na narrativa mediática enquanto não se esgotam pela usura ou não são ultrapassados por outros. Os mais recentes são ‘nepotismo’ e ‘endogamia’. E até já saltaram a fronteira, como se leu no jornal espanhol El País…

Diz-se, com ironia, que temos a singularidade de um «Governo em família», ou que os escolhidos saíram da lista de convidados para festejar o aniversário de António Costa. 

Ao Governo junta-se o PS na celebração desse ‘espírito de família’. A tal ponto que até Rui Rio, habitualmente cinzento, se saiu com humor ao dizer que «o Conselho de Ministros parece uma ceia de Natal».

Os exemplos ‘em família’ são conhecidos e vão desde Vieira da Silva e a filha Mariana, a Eduardo Cabrita e à mulher Ana Paula Vitorino, até a Francisca Van Dunem, ou aos recém-chegados Duarte Cordeiro e Pedro Nuno Santos.

O próprio presidente do PS e líder parlamentar, o açoriano Carlos César, não se envergonha de ter toda a família próxima investida em funções públicas e ele mesmo nunca conheceu outra atividade. 

É um profissional da política que, em coerência, apareceu pressuroso a achar «natural que, em determinadas famílias, onde essa vocação se multiplica, as pessoas tenham empenhamento cívico similar». Di-lo sem o menor sobressalto cívico. Vale tudo.

A falta de pudor alastrou, aproveitando o adormecimento das oposições, e tornou-se mais atrevida por sentir a opinião pública anestesiada. 

Há empresas em Portugal que têm como regra a não admissão de empregados com um grau de parentesco próximo de outros já nos quadros. 

Fazem-no por uma questão de transparência e com o declarado intuito de eliminar favorecimentos ou conflitos de interesses, 

Se isto acontece no setor privado, por maioria de razão deveria ser uma regra na administração pública, no setor empresarial do Estado ou no Governo.

O certo, porém, é que os boys e as girls têm inundado o aparelho do Estado. António Costa gosta de estar rodeado por um séquito de fieis, obedientes e acríticos. Francisco Assis pagou a ‘rebeldia’ com o nome riscado nas listas para o Parlamento Europeu. Ainda tentou ‘emendar a mão’, mas fê-lo demasiado tarde… 

É improvável encontrar em governos democráticos um elenco tão enfeitado de amigos e compadres.

A «pandemia de relações familiares que pauta a composição do Governo» é «uma flagrante e temerária violação do princípio republicano» – afirmou Paulo Rangel, lamentando que o Presidente da República não tivesse advertido o primeiro-ministro em exercício contra essas «promiscuidades familiares».

Rangel defendeu mesmo que, «se se aplicasse o Código de Procedimento Administrativo nas reuniões do Governo, levaria a impedimentos sistemáticos de votações no Conselho de Ministros». 

Algo que não parece incomodar muito quem deveria – quando se verifica a multiplicação de casos onde a condição de amigo, familiar ou titular de cartão do partido são os melhores atributos para desempenhar funções públicas. 

Escrever isto hoje é, contudo, ‘chover no molhado’. No PS sobra gente exímia em se auto vitimizar, protestando estados de virtude e de inocência. 

A cartilha tem ‘direitos de autor’ – e António Costa segue-a à letra, juntando-lhe um carrossel de inaugurações e de reinaugurações, ao estilo de Sócrates, com aproveitamento da máquina do Estado ao serviço da propaganda eleitoral. 

A ‘cereja em cima do bolo’ foi a descarada manobra de redução dos passes sociais, sem cuidar antes de corrigir as frequentes anomalias que afetam os utentes dos transportes públicos. 

 Em vez de se investir na melhoria da rede, na manutenção e na qualidade do material circulante – a cair de podre, como está provado nos comboios da CP -, incentiva-se a procura, mesmo sabendo de antemão que a oferta não dispõe de condições mínimas para corresponder a um aumento de circulação. 

Pretende-se o efeito imediato e fácil. Apesar de governar em minoria, Costa faz o que lhe apetece, com a cumplicidade do PCP e do Bloco. O resultado não se recomenda. 

Sócrates quis controlar a banca, a Justiça e os media – e quase o conseguiu. Costa é mais sofisticado. Espera ser ungido, finalmente, nas próximas legislativas, e alcançar os mesmos desígnios com menos custos de imagem. Aprendeu. 

Com o sistema financeiro dependente, os media à trela, a Justiça novamente ‘domesticada’ – e os casos mais embaraçosos postos a recato, à espera de prescrição ou de um expediente processual qualquer -, Costa poderá dormir sossegado ou pôr o avental e ir cozinhar outra vez com a família para o programa da manhã da SIC…