Amnésias seletivas…

Relidos os mais recentes depoimentos prestados em sede de comissão parlamentar de inquérito, é legítima a suspeita de que o Banco de Portugal faz mal à saúde…

De facto, em audições consecutivas, um ex-governador e o atual governador confessaram diante dos deputados, quase pelas mesmas palavras,  que não têm memória de episódios relevantes que ocorreram durante os respetivos mandatos.

Carlos Costa, primeiro, e Vítor Constâncio, depois, exibiram uma espécie de ‘apagão’ em relação a factos importantes, relacionados designadamente com operações de risco da Caixa, que lhes passaram ao lado. 

Constâncio, que esteve à frente do BdP durante uma década – entre 2000 e 2010, período abrangido pela auditoria à CGD –, foi perentório e garantiu, inclusive, sobre os avisos que lhe terão chegado do forrobodó na Caixa, que não se lembrava de qualquer operação que não tivesse cobertura legal.

Nem mesmo uma carta preocupada, em 2002, de um então administrador (Almerindo Marques) sobre o descalabro encontrado no banco público, alertando-o para falhas no controlo do risco de crédito, foi bastante para o pôr de sobreaviso. Faltou-lhe a memória, como já acontecera dez anos antes com o ‘buraco’ do Banif.

Para Constâncio, o papel do BdP não é ser «polícia moral» nem – como argumentava em 2009 – «um superpolícia com acesso a tudo». Ou seja, limita-se a supervisionar os rácios de capital, como alvitrou um deputado.

Quando a ‘memória seletiva’ se tornou mais notória, Constâncio recorreu a outra ‘muleta’ providencial: afinal, a supervisão não cabia nos seus pelouros, porque ele «estava essencialmente concentrado na política monetária». Dito isto, apontou o dedo, sem problemas de consciência, a um vice-governador do BdP entretanto falecido (António Marta). Edificante.

Constâncio seria investido, depois, na vice-presidência do BCE, indigitado por Sócrates, decerto como recompensa ao correligionário pelos bons serviços prestados – enquanto a Caixa se afundava sob o peso de empréstimos ruinosos.

Por seu lado, Carlos Costa, que foi administrador não executivo da Caixa antes de ser governador do banco central, também sofreu uma ‘branca’, a ponto de não se lembrar de ter intervindo em qualquer decisão colegial no banco público que envolvesse dinheiro ou risco.

E resguardou-se ao afirmar que «nos 25 grandes créditos que geraram perdas para a CGD eu não participei», porque «só ocasionalmente participava em conselhos alargados de crédito, porque não tinha competências no risco». Ou seja, estava lá para fazer número, entrava mudo e saía calado, além de surdo a tudo o que acontecesse nessas reuniões.

Estes comportamentos no mundo financeiro dão que pensar. Já Ricardo Salgado invocou idênticas dificuldades quando se tratou de explicar a teia de situações irregulares que têm vindo a público sobre o BES-GES, sob o cândido argumento de que o banco respirava saúde e que só colapsou por causa da teimosia de Pedro Passos Coelho em não lhe dar ouvidos…

Mas o mal é contagioso. Veja-se, ainda, o caso de Mário Centeno – por sinal, oriundo dos quadros do BdP –, vítima de constantes reparos, sob suspeita de ‘cativações’, por se ‘esquecer’ amiúde de transferir as verbas orçamentadas para a saúde e educação ou reservadas ao investimento público…

O impacto só não é maior porque o PCP e o Bloco fingem que não reparam no caos dos hospitais públicos e no desnorte no ensino, a troco de uma vitualhas para os servidores do Estado ou de umas avenças para associações progressistas doutrinarem o ‘género’ nas escolas.  

O roteiro dos esquecimentos ficaria incompleto sem o contributo trazido pela Procuradoria-Geral da República, que aguarda, desde 2016, pela resposta às «cartas rogatórias enviadas à Suíça no contexto das investigações conjuntas», e sem as quais o processo do BES não progride.

Para a PGR, as respostas que continuam esquecidas (supõe-se…) na Suíça são «determinantes para a prolação do despacho que porá termo ao processo».

Ou seja, se as autoridades helvéticas não se ‘descoserem’ – ou se, distraidamente, tiverem enviado as cartas para a ‘cesta secção’ –, o processo fica em banho-Maria e a equipa de 31 procuradores, investigadores e demais polícias pode meter férias grandes.

Premonitória, a revista Sábado titulava em capa: Investigação ao BES – o desastre. Ora, se o desastre está anunciado, o desfecho também se adivinha.

Se, por acaso, a Operação Marquês ou o folhetim BES-GES nunca chegarem a julgamento, a culpa não é de ninguém – morre solteira. Poupa-se o aparelho da Justiça a maçadas e não se fala mais no assunto. Os ‘donos disto tudo’ precisam de paz de espírito…