Imperador Akihito. O diplomata semideus que queria ser biólogo marinho

O imperador japonês vai abdicar do trono este mês, pondo um fim à era Heisei – que significa qualquer coisa como ‘procurar a paz’. Akhiro tentou ao longo do seu reinado sarar as feridas das conquistas do pai mas a sua liderança cessa da mesma forma que começou a sua vida: com o ressurgimento do…

Imperador Akihito. O diplomata semideus que queria ser biólogo marinho

Sol nasceu para uma nova era no Japão, com a ascensão do príncipe Naruhito ao trono de Crisântemo, um dia depois da abdicação do pai, o imperador Akihito, de 85 anos. Será a primeira abdicação de um imperador em mais de dois séculos, pondo fim à era Heisei, iniciada em 1989. É deste modo que muitos japoneses contam os anos, com uma era por imperador, apesar de a utilização do calendário gregoriano ser cada vez mais comum no país. O reinado de Akihito ficou marcado pela sua disposição para assumir responsabilidade pelos erros dos seus antecessores. Dedicou-se com grande afinco em esforços diplomáticos por todo o mundo, tornando-se num pacifista convicto que se opôs às tentativas de voltar a estabelecer o exército japonês, desmantelado depois da Segunda Guerra Mundial.

Akihito, o filho mais velho do imperador Hirohito e da imperatriz Kõjun, nasceu em 1933, em pleno crescimento do nacionalismo expansionista japonês. Enquanto ainda era criança, viveu o bombardeamento de Tóquio, tal como o trauma nacional das bombas atómicas lançadas sobre Nagazaki e Hiroshima em 1945. Apenas se pode imaginar o espanto do pequeno Akihito, que com 12 anos viu o seu pai, considerado como um semideus vivo pelos seus compatriotas, ser derrotado e humilhado pelos Aliados, que desejavam verem-se livres de vez do estatuto de imperador. Foi apenas depois da intervenção do general Douglas MacArthur, que liderou a ocupação militar do Japão pelos Estados Unidos, que se manteve a monarquia – algo que se mostraria essencial para a manutenção da aliança nipo-americana nos anos da Guerra Fria. Contudo, o general fez questão de deixar claro que o imperador já não era uma divindade na Terra, mas sim um símbolo unificador do Estado, sem qualquer poder executivo. MacArthur insistiu num encontro sem precedentes, cara a cara com Hirohito, e fotografou a ocasião para deixar bem claro aos japoneses que o papel do imperador não voltaria a ser o mesmo.

Foi este legado complexo que Akihito herdou do seu pai. Com o trono de Crisântemo veio o estatuto de semideus derrubado, os fantasmas dos crimes de guerra nipónicos, junto com a especulação quanto ao grau de participação direta da família imperial. Mas Akihito também herdou o amor ávido do pai pela biologia marinha, uma paixão que o acompanhou a vida toda. Pai e filho, descendentes diretos da deusa solar Amaterasu, segundo a tradição japonesa, patriarcas da mais antiga monarquia hereditária do mundo, passaram boa parte dos seus dias a debruçarem-se sobre criaturas marinhas, sendo Hirohito um especialista reconhecido em alforrecas, enquanto Akihito é um autor publicado, com dezenas de artigos científicos, em particular sobre a ordem gobiiformes, tendo nomeado até cinco novas espécies deste grupo. Foram estes peixes pequenos e discretos que vivem no subsolo marinho que roubaram atenção e a dedicação de um descendente de deuses.

A imagem de pessoa simples e gentil que Akihito desfruta no Japão é reforçada pela seu casamento com Michiko Shõda, que conheceu enquanto jogava ténis, em 1957. Shõda foi a primeira plebeia a casar com um membro da família real, quebrando mais de 2.600 anos de tradição. O romance foi descrito como um conto de fadas que enfureceu os grupos mais tradicionais, em particular porque Shõda vinha de uma família católica. Apesar das adversidades, o casal teve três filhos, Naruhito, que irá herdar o trono do pai, o príncipe Fumihito e a princesa Sayako Kuroda.

Desde o início do seu reinado que ficou claro que Akihito nunca esqueceu as lições aprendidas na Segunda Guerra. O imperador ascendeu ao trono no pico do crescimento económico japonês, no fim da Guerra Fria, e focou muita da sua energia a desenvolver esforços diplomáticos por todo mundo, incluindo com os antigos adversários, tentando sarar as feridas deixadas pela conquista sangrenta de boa parte da Ásia pelo seu pai. Em 1992 chegou a visitar Pequim, expressando a sua tristeza pelos horrores da guerra. A visita foi bem vista pelos chineses, e apesar de os críticos exigirem uma desculpa mais direta, ajudou a montar o palco para a reabertura das relações entre os dois países na década seguinte. Mas enquanto a situação diplomática florescia pela mão do imperador, o Japão enfrentava tempos conturbados. À estagnação económica dos anos 1990, juntaram-se desastres naturais brutais, como os terramotos de 1995 e 2011, o último dos quais levou à rutura da central nuclear de Fukushima. Perante a devastação, Akihito rompeu com todos os protocolos imperiais, dirigindo-se aos japoneses ao vivo na televisão, destacando-se como o primeiro imperador com tal proximidade dos seus súbditos.

Apesar do reinado de Akihito ter sido focado na diplomacia, bem longe da arena política, o seu derradeiro ato – a abdicação – não deixa de estar carregado de significado. Junto com os seus apelos pacifistas, a saída do imperador é vista como uma recusa em compactuar com o primeiro-ministro Shinzo Abe, um conservador que quer alterar a constituição japonesa, para permitir a criação um exército. O reinado de Akihito termina como começou a sua vida: com o crescimento do nacionalismo japonês. Algo expresso no nome escolhido pelo Governo para a nova era, Reiwa – uma referência à poesia ancestral japonesa, não proveniente dos antigos textos chineses como manda a tradição. Uma expressão que pode significar ‘bela harmonia’ ou ‘ordem e harmonia’. Longe vão os tempos de Heisei – ‘alcançar a paz’.