Justiça popular?

O tribunal de júri tornará a Justiça menos técnica e mais humana. Mas, por outro lado, aproxima a Justiça do Estado da Justiça popular.

O Ministério Público pediu um tribunal de júri para o julgamento de Rosa Grilo e António Joaquim, o par que supostamente matou Luís Grilo. Significa isto que quatro cidadãos de Vila Franca de Xira serão sorteados para fazer parte do tribunal.

Tratou-se de um crime hediondo, planeado com terrível frieza. Segundo a acusação, a mulher abriu a porta de casa ao amante para este, de pistola carregada, ir ao quarto do marido, apontar-lhe a arma à cabeça e disparar. Assim, impiedosamente. Com ela a assistir. Como pôde uma mulher que se casou com um homem, que viajou com ele, que comeu com ele à mesma mesa, com quem teve um filho, colaborar no seu assassínio a sangue-frio?

Como pôde ajudar a matar o pai do seu filho, deixando-o órfão?

E como pôde depois expor o cadáver, nu, à voragem dos animais, para ser comido pelos cães e pelas moscas?

Dir-se-ia ser preciso ter muito ódio acumulado para participar num ato tão infame. Mas, de acordo com a acusação, nem foi esse o caso. O principal motivo foi querer receber o seguro de vida do marido – para, depois, fazer vida com o amante.

Mas isso revela uma enorme ingenuidade. Como foi possível Rosa Grilo ter acreditado que o seguro lhe pagaria o prémio sem investigar as causas da morte nem as suas circunstâncias? E como poderia ela juntar-se depois ao amante numa vida a dois sem levantar suspeitas?

Rosa Grilo não parece parva. Tem um ar dissimulado, cauteloso, de quem pesa as palavras e os atos. Como pôde ser tão crédula? A perspetiva de ter dinheiro em abundância e de poder fazer sexo à vontade ter-lhe-á possivelmente dado volta à cabeça. O dinheiro e o sexo terão produzido uma mistura explosiva que a cegou.

Mas voltemos ao início: o Ministério Público pediu para este julgamento um tribunal de júri, ou seja, a presença de quatro pessoas do povo que funcionarão como jurados. Mas por que razão o terá feito?

Julgo que o motivo é óbvio: a acusação, apesar de estar recheada de factos, tem algumas lacunas comprometedoras – pelo que, numa apreciação meramente jurídica, havia o risco de o par ser ilibado. Ora, com o júri, é introduzido no julgamento o fator de ‘senso comum’. O tribunal não olha só para as provas mas para todas as evidências, para os fatores objetivos e subjetivos, e aí será muito mais difícil uma absolvição.

Mas isto configura uma espécie de ‘julgamento popular’. Pessoas sem formação jurídica, com uma opinião formada sobre o assunto a partir das notícias difundidas pelos media, vão decidir a pena…

E esta constatação confronta-nos com os limites da Justiça. A Justiça portuguesa está hoje cheia de garantias, de subterfúgios, de alçapões – tão cheia, que já houve juízes a absolver arguidos dizendo-se convictos da sua culpabilidade.

Nos dias que correm, é muitíssimo mais fácil um culpado sair em liberdade do que um inocente ser condenado. Ora isto também representa uma injustiça. Para as vítimas dos crimes, para os  que são roubados, para as famílias dos que são mortos, a absolvição dos responsáveis representa um enorme desrespeito.

É bom que se pense nisto. As sentenças não podem ser vistas apenas do ponto de vista dos arguidos – têm de ser vistas também do ponto de vista das vítimas. 

O tribunal de júri preenche talvez os interstícios por onde criminosos podem fugir à Justiça. Faz intervir na decisão do tribunal fatores subjetivos de conhecimento da realidade e da natureza humana que a Justiça não pode ponderar – mas que tornará possivelmente a Justiça mais justa. Menos técnica e mais humana.

De certa forma, os jurados poderão compensar as lacunas da Justiça. Mas, por outro lado, aproximam a Justiça do Estado da Justiça popular – e isso também comporta enormes riscos. Porque é impossível que os jurados, quando se inicia o julgamento, não tenham já uma opinião formada sobre a pena que vão propor. E isso é a negação da Justiça tal como a concebemos.