Lá dentro, o monstro

MESQ : de Mesquita. Pelo meio de tudo o que já fez na vida, a Ana encontrou  um caminho sem regresso – o de artista. ‘Temperamento’ parece o título ideal para a exposição que tem em cartaz. Temperamento é o outro nome que ela podia ter…

Lá dentro, o monstro

Para lá da janela, o Tejo. O estuário, o Bugio, as areias da Caparica até ao horizonte no lugar em que o Cabo Espichel resolve recortar a paisagem. Quem diria que a mulher clara, de olhos quase transparentes, sentada na minha frente, veio um dia de África? Há uma canção que me vem à memória por instantes. Melody Fair: «She knows that life is a running race/Her face shouldn’t show any line».

A Ana não está cansada de guerra como a Tereza Batista de Jorge Amado. Pelo contrário. Está a viver intensamente a sua guerra contra o preconceito. «Há muita gente que, quando vê os meus quadros, ainda se sente quase indignada: ‘Mas és tu que fazes isto’” Eu. Eu que fui jornalista de moda, que trabalhei em revistas femininas, preciso de vencer essa espécie de descrédito. Este estigma de, quase de repente, ter mostrado o meu trabalho de artista, que estava como que fechado dentro de mim, e ter resolvido não apenas apresentá-lo publicamente e, ainda por cima, ter orgulho nele e ter sucesso com ele. Há quem não faça a mínima ideia de que há oito anos que faço exposições».

Lá dentro, havia o monstro, e a expressão é dela. Um monstro que precisava de liberdade e de oxigénio e que se recusava a manter-se mais tempo fechado numa existência a contraluz.

«Este é um passo que dei e não tem regresso. Voltar atrás seria ultrajante! Não vou voltar para o jornalismo, não vou andar a perder tempo com coisas que não me preenchem. Quero pintar! E quero pintar em público! Recuso-me a ser um bicho de atelier, nesse sofrimento de penumbra que é marca de muitos pintores, inacessíveis aos outros, como se a sua pintura fosse um segredo indesvendável e incompreensível».

Podem vê-la a trabalhar, se quiserem. Dependurada numa maquineta que, assim, à primeira vista, gera desconfiança, acima e abaixo num painel que é uma explosão cromática de mensagens. Do chão até ao teto, a Ana, que é, por fora, uma figura frágil e delicada, tem uma eletricidade contínua de alta voltagem.

«O Eduardo Correia apoiou-me muito nesta ideia de montar esta exposição no Núcleo Central do Tagus Park em tributo aos 100 anos de Amadeo de Souza-Cardoso. Amanhã mesmo há uma visita escolar. Os miúdos vêm ver-me pintar, falam comigo, fazem perguntas, querem conhecer as cores e a forma de as misturar. Isso deixa-me profundamente feliz».

Pega no telefone com frequência. Às vezes até com ansiedade. Perfecionista, não faz cedências a si própria. Está de abalada para Moçambique, para esse país massacrado pelas águas que é tão seu, diz que é preciso gritar para que as pessoas percebam o drama das vidas perdidas, interrompidas, destruídas. Lá no alto, um olho negro, uma sobrancelha cerrada, o chapéu de Amadeo. O olho é prescrutador. Vendo bem, com atenção, é mais do que isso: é vigilante. Não de uma vigília de censura; de uma vigília perturbante que nos faz pensar em todos os traços, em todas as curvas, em todas as elipses e ângulos que vão nascendo e se desvanecem por toda a tela dominada pela letra T. De temperamento, claro.

Não é fácil olhar para a Ana Mesquita e perceber a batalha em que está envolvida. Ela explica, mas há muito para além das palavras. É de sentimentos que falamos e não há um código para falar sobre sentimentos. Não há um dicionário de sentimentos. Não há uma enciclopédia de sentimentos. Cada um tem os seus, mais ou menos profundos, mais ou menos exaltantes, mais ou menos perturbantes, e não há frases capaz de os reproduzir com a fidelidade de um gira-discos. Talvez seja mais fácil exprimi-los por cores, por gestos que trazem consigo as cores, na tela ou no ipad no qual, de repente, como num movimento de prestidigitação, ela desenha no ecrã, com o indicador ligeiro, órbitas arbitrárias de um poema de Torga. «São fantásticas as possibilidades que temos, neste momento, à disposição num ipad. Embora, claro, haja sempre os conservadores que torcem o nariz a uma nova forma de pintar. Eu estou fascinada por este conceito. Em qualquer sítio, em qualquer situação, em qualquer momento, posso abrir o ipad e criar. O David Hockney, grande figura da pop-art dos anos-60, desde 1985 que desenvolveu a técnica de desenhar em computador, que já pintou centenas e centenas de retratos e de quadros em iphone e ipad, que combinou fotografias digitais com pintura para fazer o que chamou de desenhos fotográficos e fez exposições com eles, tem uma frase extraordinária: ‘Agora mando os meus quadros para exibição por mail’. Ora isto é maravilhoso. Entrámos no futuro da arte por uma nova porta».

Confessa que se viciou nesta obra quase virtual. Tem à disposição uma série de programas que lhe permitem desde desenhar a carvão ou a tinta-da-China a pintar com a consistência do óleo. E não precisa de esperar que a tela seque para que o quadro se conclua. Vendo bem, nem é mulher que goste de esperar.

As guerras

Um dia, resolveu mandar alguns dos seus últimos quadros para um professor particularmente preferido dos seus tempos de estudante de design, no Porto, Jaime Azinheira. Em resposta, o elogio: «Estás a desenhar incomparavelmente melhor do que no tempo em que eras minha aluna».

«Esse meu professor é uma figura especial. Um dia, explicou-me: ‘Depois de ter vindo da Guiné, onde estive na Guerra Colonial, percebi que tinha evoluído muito na qualidade do meu traço. Às vezes é preciso ir à guerra para nos tornarmos melhores naquilo que fazemos’. E eu, ingénua: ‘Mas eu não fui à guerra’. E ele: ‘Deves ter passado pelas tuas guerras, certamente’. Percebi o que ele tentava dizer-me de uma forma que me marcou muito. Claro que tive as minhas guerras! Tinha e tenho. Desde o dia em que bati à porta do Expresso e me ofereci para escrever para o suplemento Vidas, sobre moda, desde a minha pós-graduação na UAL sobre imprensa feminina, desde que dirigi a revista da Lanidor que era oferecida às clientes, ou antes ainda, quando fiz fardas para ganhar a vida, ou quando trabalhei para a Nani Strada, pintando sedas com estampados criados por mim. Até agora que, depois disso tudo, ainda me sinto incompreendida e uso essa guerra como impulso para criar. Ao contrário do que a maior parte das pessoas pensa, não faço coisas à toa, por capricho. Quando começo a desenhar já levo um percurso de investigação feito, sobre alguém, sobre um tema. É daí que parto até sentir que algo se completa. Por isso, tenho de me sentir satisfeita por me atribuírem o prémio de Personalidade do Ano em Artes Plásticas. É um reconhecimento».

O espaço é grande, luminoso. Chamam-lhe Núcleo Central, nome que pode encaixar-se nas paredes brancas, de blocos transversais, nos vidros largos a toda a volta, mas fica curto para o painel que tem sido, nos últimos meses, o trabalho mais temperamental, porque o termo vem a propósito, da Ana. Há gente sentada nas mesas do cafés, outros passam com destinos variados, em grupos ou solitários, não há maneira de não olharem, ainda que de viés, para a policromia vertical de um Amadeo rodeado por pétalas de tinta.

O sol esgueira-se em reflexos. A música ao fundo. Música inevitável, diria. Música como companhia, música como balanço, música como despontar da imaginação, provavelmente. Conversas desencontradas, sobrepostas. Sons humanos em cavos ecos. Tempo e espaço. Luz e sombras. A retidão das formas. Ana, arquiteta por dentro, incapaz de se reduzir ao espaço de uma sala, à ditadura do estirador;Ana, arquiteta na vida, planeando os dias, as semanas, não perdendo de vista a agenda, os horários, o calendário. Há nela uma ordem irrefutável. Desmentida pelo que pinta? Não, não, nem por isso. É preciso olhar. É preciso conhecer o segredo da raposa doPrincipezinho: só se vê bem com o coração; o essencial é invisível para os olhos.

Vou, por isso, olhando os sinais e tentando perceber o essencial desses sinais. O que fica para lá da cor? A ideia ou a substância? A alma ou o corpo? A face que se repete como num jogo infinito de espelhos contrapostos.Amadeo, Amadeo, Amadeo. Também havia uma canção assim. «Rock me all the time to the top…» Notas e poemas. E ritmo, sobretudo.
Amadeo não ri. 
Amadeo não sorri.
Amadeo tem o olhar fixo em nós que temos o olhar fixo nele.
«És para sempre responsável por aqueles que cativas».
A Ana contou-me que tinha um monstro por dentro e, um dia, resolveu soltá-lo. O monstro tomou-lhe conta das mãos e as mãos tomaram conta das cores e as cores tomaram conta das telas e as telas tomaram, por sua vez, conta de quem as vê com o coração.
O monstro que a Ana soltou é cativante.
E continua à solta por dentro de uns olhos muito claros, quase transparentes…