Racing. Uma sombra em Lisboa

Em 1950, o Racing também era, como hoje, campeão da Argentina. Uma equipa tremenda que sofreu, em Lisboa, uma derrota inacreditável.

Avellaneda, a cidade do Racing, fica nos subúrbios de Buenos Aires. Durante anos foi um centro industrial erguido nas margens de Riachuelo, local onde se produzia desde têxteis a peças de metalurgia, pejado de mercados e de refinarias.

Dois clubes rivalizam até à abominação nesse lugar hoje em dia bem mais pacato: o Independiente e o Racing. Agora, o Racing está em festa. Acabou de ser campeão. Tendo como capitão Lizandro Lopez, antigo jogador do FC Porto, e com os seus ‘hinchas’ continuando a orgulhar-se de uma alegria que não existe em casa do rival: «Y a vos Independiente yo te digo/Vos sos amargo y pecho frío/Vos sos amargo y tiratiros…». A música faz parte do sangue do Racing. Não fora Carlos Gardel, o cantor e tangos, um dos adeptos do clube. Há uns que dizem: adepto até após a morte. E outros cantam: «Cuando yo me muera/no quiero llantos ni penas/Prefiero que se me vele/envuelto en una bandera».

Em 1950, o Racing também foi campeão da Argentina. Chegou a Portugal acompanhada pelo San Lorenzo de Almagro para dois fins de semana da mais estreme festa do futebol. No dia 15 e no dia 22 de janeiro, as equipas argentinas defrontariam Benfica e Sporting no Estádio Nacional. Que poderia o público aficionado querer melhor e mais rico? Seis horas de bola em duas doses de três. Primeiro um Benfica-San Lorenzo e o Sporting-Racing; em seguida um Sporting-San Lorenzo e um Benfica-Racing.

É preciso dizer que se reconhecia sem rebuço a superioridade dos sul-americanos. Dois anos antes, o San Lorenzo viera a Portugal aplicar goleadas homéricas ao FC Porto (9-4) e ao BSB, uma espécie de seleção de Lisboa formada por jogadores de Belenenses, Sporting e Benfica (10-4).

Não é de admirar que, no dia seguinte, os jornais trouxessem em título de primeira página: Os argentinos reafirmaram a qualidade do seu futebol e passearam a sua classe.

Se alguém estava disposto a dúvidas sobre tão preclara verdade, que se agarrasse ao números: Benfica, 2 – San Lorenzo, 5; Sporting, 1 – Racing, 3. «A superioridade dos argentinos assentou sempre numa multiplicidade imaginativa de lances de ataque para os quais os portugueses não se encontram minimamente preparados».

Oito dias depois

Ligeiramente menos entusiasmante, o domingo que se seguiu. Bem sabemos que os nossos adeptos vivem de um clubismo demasiado arreigado e que preferem perder um grande espetáculo se tal significar a derrota das suas cores. E sportinguistas e benfiquistas marcharam para o Jamor com a certeza  antecipada da derrota. Quem diria que se enganavam?

Para que a festa fosse argentinamente nacional, o FC Porto recebeu, no Estádio do Lima, os Newell’s Old Boys, de Rosário. Obteve um honrosíssimo empate: 3-3.

Iniciou-se a tarde lisboeta com nova vitória do San Lorenzo: 3-1 sobre o Sporting. A seguir é que foram elas. A tarefa encarnada parecia inexpugnável. Mas, um Benfica impressionante de raça e vontade chegaria ao intervalo a vencer por 1-0, graças ao golo de Rosário, a passe de Julinho. O público do Jamor sonhava com uma tarde de glória. A segunda parte do jogo foi verdadeiramente louca. Aos 62 minutos, Julinho oferece o segundo golo a Rosário. Aos 67 é Rogério Pipi a fazer o 3-0. O 4-0 surge aos 80 minutos, por Julinho. Os espetadores estão encantados. A equipa deslumbra-se com a goleada aplicada a um dos mais temíveis conjuntos do mundo, facilita na defesa, e sofre dois golos à beira do final. Nada que tire, no entanto, o brilho a um triunfo extraordinário. Os jornais são pródigos em elogios: «Pela primeira vez um conjunto português venceu um campeão argentino. Na história do maior clube de Portugal uma nova página, porventura a mais gloriosa, acaba de ser escrita». Rosa Lobato presenteou-nos com esta prosa inflamada: «Foi assim, derrubando campeões considerados imbatíveis, fazendo rolar no pó da vulgaridade o cetro de que são portadores equipas que orgulhosamente ostentam títulos de respeito, que o Benfica entrou na alma do povo com o epíteto de o melhor do mundo». 

O feito tornou-se inolvidável.