Nesta exposição cabe todo o tempo do mundo

As medidas e a passagem do tempo, a memória e o esquecimento, o permanente e o efémero são os temas da exposição Dois Anos e Meio, de Nuno Nunes-Ferreira, na galeria Balcony, em Lisboa. Ao b.i., o artista fala sobre o seu precioso arquivo pessoal e explica por que se vê como um garimpeiro.

Nesta exposição cabe todo o tempo do mundo

Durante dois anos e meio, Nuno Nunes-Ferreira deslocou-se diariamente ao café mais próximo de casa, no Ribatejo, para recolher o exemplar do Correio da Manhã que estava guardado para ele. Depois disso, retirava-se para o estúdio de 300 m2 onde trabalha e recortava metodicamente as letras gordas e títulos do jornal segundo uma lógica muito própria.

O resultado pode ser apreciado até 20 de maio na exposição Dois Anos e Meio, na galeria Balcony, em Lisboa. Para começar, quatro grandes telas que são uma espécie de ‘sopa de letras’: à distância, os recortes dos títulos formam padrões intricados em tons de cinzento;aproximando-nos, encontramos palavras que fazem ou fizeram parte do nosso quotidiano recente. «A questão fulcral aqui é o tempo, o tempo que leva a fazer as coisas», explica o criador. «Estamos neste registo das coisas muito apressadas, das notícias, do que amanhã já não interessa, então criei estes painéis que acredito que daqui a uns anos sejam interessantes de analisar, pela questão das palavras: troikas, trumps, pequenos apontamentos que agora estão na berra e daqui a uns anos…». Não é difícil completar a frase:daqui a uns anos podem já ter caído no mais completo esquecimento.

Com o que sobrou – as páginas das quais retirou o miolo e que se transformaram numa espécie de esqueleto descarnado – o artista construiu outra obra, uma torre de jornais sem notícias, que vendeu em Madrid.

Mas há mais. Lá em baixo, na cave, encontra-se um conjunto de instalações para manusear. Pequenos arquivos que ganham vida quando abrimos os dossiês e começamos a descobrir o que têm lá dentro. São mais recortes de jornais, organizados segundo uma lógica temporal. «Esta peça vai desde 1 segundo a um milénio. 60 segundos fazem um minuto, 60 minutos fazem uma hora, vai em crescendo», explica o autor. Nuno conseguiu desencantar, em jornais das últimas décadas, títulos que contêm referências a unidades de tempo: um segundo, dois segundos, três segundos… até aos 60 – e há um recorte para cada. Depois, temos um minuto, dois minutos, três minutos… até aos 60. Uma hora, duas horas, três horas… até às 24. Um dia, dois dias três dias… até aos 31. Um mês… e por aí fora, até ao milénio. Não é um exagero dizer que, entre as capas destes dossiês, cabe todo o tempo do mundo.

Noutro dos arquivos encontramos imagens que mostram relógios: cada relógio marca uma hora diferente, percorrendo todos os minutos do dia (no total são 1440) desde a meia noite em ponto até às 23h59. Um ecrã vai mostrando essas mesmas imagens em tempo real: no fundo trata-se ele próprio de um relógio pouco convencional. «Parti da peça do Christian Marclay [The Clock, uma colagem audiovisual de vários fragmentos de filmes, que dura 24 horas]. Mas aqui quase que existe um relógio digital [as imagens no ecrã] e um relógio analógico [o dossiê com recortes] para consultar», resume o artista.

«Isto está a tornar-se muito viciante porque há dossiês que não estão completos. Tenho um papelinho com uma cábula, e sempre que entro numa tabacaria ou papelaria tenho de ver tudo o que é revistas e jornais». E esse trabalho não se torna aborrecido?, inquirimos. «Não, a mim dá-me gozo. Houve um curador brasileiro, do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, que esteve aqui e me disse: ‘Você anda ao garimpo’. Achei que se adequava: ando à procura e de repente encontro o ouro, a peça que falta».

‘Hoje já não tinha dinheiro para comprar as minhas peças’
Nuno Nunes-Ferreira licenciou-se em Arquitetura mas nunca exerceu. Quando terminou o curso, anunciou aos pais que ia dedicar-se não a desenhar edifícios, mas àquilo de que mais gostava: fazer arte. «E quem é que te vai financiar?», perguntou o pai. Felizmente nunca foi preciso. Nuno está hoje representado em algumas das mais importantes coleções espanholas e portuguesas, como o IVAM (Valência), o MAAT e a Gulbenkian.

«Fui um artista que começou por baixo, até porque não fiz as Belas-Artes. Mas hoje se calhar já não tinha dinheiro para comprar as minhas peças. Houve uma valorização muito grande», comenta. Isso deveu-se em parte ao seu galerista espanhol, que apostou nele, levou-o a feiras, apresentou a sua obra aos principais colecionadores. «Em Espanha sinto-me em casa. Mal faço uma exposição sai logo uma crítica. Aliás, vim ao ARCOLisboa com a galeria espanhola», revela. O seu trabalho fez tanto sucesso que apareceu na capa do diário espanhol ABC e da revista alemã Der Spiegel.

Embora, quando começou a dar os primeiros passos, há 20 anos, fizesse pintura, rapidamente o artista mudou de registo. «Comecei cada vez mais a desinteressar-me desse lado da expressão e a interessar-me pelo lado conceptual da criação, até que chegou um ponto em que a pintura não fazia sentido». Seguiu-se um longo período em que construía imagens de árvores a partir de recortes que fazia com a precisão de um cirurgião (Nuno é filho de médicos) e a paciência de um monge. Vistas de perto, percebia-se que essas árvores, também elas compostas a partir de fotografias de arquivo, revelavam mais qualquer coisa:imagens de ditadores, de personalidades históricas, de artistas, de figuras associadas a episódios negros. «A árvore funcionava como um suporte para mostrar uma história, como se fosse uma árvore genealógica».

Com estas obras conseguiu afirmar-se e definir o seu caminho – os colecionadores aderiram entusiasticamente. Mas um dia o galerista espanhol disse-lhe:«Nuno, as árvores estão a sair muito bem, mas não quero passar o resto da vida a vender a mesma coisa». «Esse ‘conselho’ foi muito importante», assume o artista.E procurou outras soluções para tratar os temas que lhe interessam.

Os dealers que alimentam o vício
Atualmente, o ponto de partida e a matéria-prima para todas as obras de Nuno Nunes-Ferreira é o seu arquivo pessoal. «Sempre organizei e criei enciclopédias de imagens através dos livros e de recortes. E os jornais foram uma consequência desse acumular de notícias e de imagens. Ojornal é um registo efémero mas também guarda muita História».

O arquivo tem crescido a olhos vistos, graças a visitas a alfarrabistas, a feiras de velharias e até a acasos. «Tenho um senhor na feira de velharias de Santarém – um dealer destas andanças – que já sabe quais são as coisas que me interessam e quando as arranja liga-me». Outro dos sítios onde se abastece é o Emaús, em Caneças, uma espécie de caverna de Ali Babá para os amantes de curiosidades e de objetos antigos. «Havia lá um conjunto de jornais, e eu perguntava sempre: ‘Sr. António, quando é que me vende isto?’. Ele respondia: ‘Estes são para o Dr.. Pacheco Pereira’. Até que tanto insisti que ele diz: ‘Quanto é que dá por isto?’. E eu: ‘Cem euros’. ‘Então pronto, são seus’.

Passado uns dias coincidiu eu ir tomar café a casa do Pacheco Pereira, onde estavam umas amigas. Contei-lhe que tinha ficado com as coisas dele. Mas arrependi-me rapidamente porque ele pareceu ficar muito nervoso: ‘O que é que estava lá?’. Na verdade, de certeza que ele tinha aquilo em duplicado ou triplicado, não lhe fazia falta nenhuma».

Um fumo espesso que se infiltrou até à gaveta mais escondida
Este espólio precioso, que além de milhares de páginas de material impresso também conta com caixas de merchandising político, chegou a estar em risco quando um incêndio deflagrou em casa do artista em 2013. Felizmente, as chamas não chegaram ao ateliê.

«Começou na cozinha e destruiu completamente uma zona de arrumos. Eu estava a preparar uma exposição para Espanha e liguei ao galerista a dizer-lhe que não ia conseguir». Mas, ao registar os estragos para efeito de seguro, houve algo que lhe chamou a atenção. «Essa zona de arrumos tinha muito material plástico, pranchas de surf, tendas de campismo… foi um fumo muito espesso e preto que se alastrou pela casa como uma nuvem e se infiltrou até à gaveta mais escondida. A casa ficou como se tivesse caído um monte de cinza negra sobre tudo. E, como a casa é muito branca, cada objeto que eu tirava deixava uma silhueta perfeita». Ligou de novo ao galerista a dizer-lhe que afinal talvez houvesse exposição. De resposta ouviu: «Faz isso, que é espetacular». Na arte, como na natureza, nada se cria, nada se perde – tudo se transforma.