Três dias na vida de Noël Coward

Tal como nos supermercados há zonas que não nos dizem nada – para alguns a de jardinagem, para outros a de puericultura, para outros ainda a garrafeira – também na literatura há géneros e autores que não tencionamos explorar. O dramaturgo britânico Noël Coward (1899-1973) era um desses casos. Até que um dia alguém me…

Tal como nos supermercados há zonas que não nos dizem nada – para alguns a de jardinagem, para outros a de puericultura, para outros ainda a garrafeira – também na literatura há géneros e autores que não tencionamos explorar. O dramaturgo britânico Noël Coward (1899-1973) era um desses casos. Até que um dia alguém me falou dele com entusiasmo: «Adoro o Noël Coward e comprei os Diários dele. Cada capítulo é um quadro, um acontecimento, uma coisa tão gira. Mete tudo: mete Rainha-mãe, mete viagens, mete Jamaica…». Como se costuma dizer, fiquei com a pulga atrás da orelha. Os Diários de Coward foram para a minha wishlist e o Pai Natal teve a gentileza de mos pôr no sapatinho.

Vou pegar numa página escolhida mais ou menos ao acaso para dar uma ideia do colorido da vida do dramaturgo. Terça-feira, 27 de janeiro de 1948: «Os Chaplins vieram cá jantar. O Charlie foi verdadeiramente brilhante. Contou-me como foi o início da sua carreira e explicou-me como criou a personagem do ‘Homenzinho’. Foi tudo muito divertido e gostei imenso». Quinta-feira, 29 de janeiro: «Fui até à Warner para ver Hitchcock a dirigir A Corda. Almocei com o Jimmy Stewart. A seguir estive a ver a nova técnica de câmara do Hitch». Os encontros com astros do cinema sucedem-se: Judy Garland, Marlene Dietrich, Joan Crawford, Gene Kelly, David Niven, Katherine Hepburn… E tudo num espaço de poucos dias! Devemos ter presente que Coward não ficava atrás, em termos de celebridade, a qualquer um destes atores. Quando Frank Sinatra cantou numa gala organizada por Grace Kelly em Monte Carlo, em 1958, foi o dramaturgo quem o apresentou à alta sociedade francesa. Na entrada de 10 de junho desse ano lê-se no Diário: «Foi anunciado na imprensa francesa que vou apresentar ‘Le Spectacle’, o que é novidade para mim, mas é claro que se o Frankie quer que eu o apresente eu apresento, recordando a sua maravilhosa generosidade em Las Vegas».

Não admira que, mais perto do final da vida, em 1968, Coward se sentisse um homem satisfeito. «Li num dos meus diários de há uns anos um relato triunfante de como deixei de fumar para sempre; ao fim de algumas semanas decidi que não podia suportar aquilo e voltei à querida erva e desde então sinto-me esplêndido. Isso pode, evidentemente, encurtar a minha vida num ano ou dois, mas não me podia preocupar menos. Tem sido um belo e proveitoso passeio de buggy e na maior parte diverti-me muito».

Quanto aos seus outros livros não sei, mas ler os Diários de Coward é de facto um prazer. Tinha razão a pessoa que me falou neles pela primeira vez – nem mais nem menos do que o humorista Herman José. Que por acaso também é da área do espetáculo e também tem fama de bon vivant.