A gaiola invicta que virou história de amor

25 anos é uma vida inteira. Curta, intensa, célere, irreverente, mas uma vida inteira. E numa vida inteira cabem muitas vidas que passam pelos 25 anos de uma vida inteira. Cabem quedas e ascensões. Cabem glórias e desilusões. Cabe tudo até ao dia em que não cabe lá mais nada. 9 anos apenas tinha este…

25 anos é uma vida inteira. Curta, intensa, célere, irreverente, mas uma vida inteira. E numa vida inteira cabem muitas vidas que passam pelos 25 anos de uma vida inteira. Cabem quedas e ascensões. Cabem glórias e desilusões. Cabe tudo até ao dia em que não cabe lá mais nada. 9 anos apenas tinha este esguio garoto mostoleño quando tentou a sua sorte no maior clube do mundo e por lá ficou. E foi ficando. E ficando. Até ao dia em que já não havia um sem o outro. Tornaram-se de tal forma simbióticos que passaram 25 anos num espirro que nem o garoto – que há muito deixara de ser garoto – conseguiu suster. Violenta e sem defesa chegou essa bola traiçoeira que o deixou pregado ao chão, sozinho perante uma plateia incrédula, afundado numa cadeira que não mais seria de sonho. Num pranto de lágrimas cruas despediu-se da única vida que conhecera. De quedas e ascensões e glórias e desilusões. A tal vida inteira na qual coube tudo até ao dia em que não coube lá mais nada…

Há um pássaro azul no meu coração que quer sair, mas eu sou demasiado duro para ele, digo-lhe, fica aí dentro, não vou deixar que ninguém te veja». Charles Bukowski podia estar a escrever sobre Iker Casillas quando verteu para o papel as palavras derramadas em The Bluebird. Deixemos de lado todo o whiskey, todo o fumo de cigarro, todas as putas e todas as empregadas de balcão, que o poema é arte sublime e uma absoluta e acabada metáfora de emoção que nos remete para a nossa vulnerabilidade enquanto seres humanos, o nosso medo de sermos expostos como uma farsa e de sermos encarados como inferiores. Fracos. Incapazes. Um risco que Iker teria de correr aos 34 anos depois de ter provado ao mundo vezes e vezes sem conta que era um dos melhores no seu ofício. Não chegava. Aparentemente já não chegava. Hoje como ontem e ontem como sempre, era novamente questionado. Contestado. Provocado. Teria de fazer nova prova de vida, desta feita longe da zona de conforto onde se desafiou e foi desafiado durante um quarto de século. Estava na altura de deixar sair o pássaro azul…

De Madrid rumou ao Porto com todas as incertezas de um adolescente que sai de casa dos pais pela primeira vez. Com mais de 20 títulos na bagagem aterrou na Invicta e abalou as fundações do futebol português, demasiado pequeno para tamanho vulto. Campeão do mundo e bicampeão europeu só para início de conversa. E três Champions. E dois mundiais de clubes. E cinco Ligas de Espanha. E duas Taças do Rei. E prémio Lev Yashine. E cinco vezes Melhor Guarda-Redes da UEFA. Galáctico por direito próprio e não por pedigree de contratação mediática e milionária do bobo Florentino. Uma lenda viva no superlativo sentido da palavra. Um cavalheiro, um verdadeiro exemplo de fair-play, um líder e um senhor na arte de comunicar. Catapultou o FC Porto para patamares de reconhecimento internacional sem precedentes, fez disparar o clube na imensidão anárquica do online à escala global, adaptou-se à mais bela cidade do norte ibérico e adotou-a como sua, ao mesmo tempo que o Porto fez dele o seu filho predileto. Uma segunda vida, uma história de comunhão e amor verdadeiro, uma nova e perfeita simbiose entre o pássaro azul e uma cidade que nunca poderia ser gaiola…

Ao terceiro ano chegou o tão desejado título de campeão, mas o seu valor já o provara vezes sem conta de dragão ao peito. Fez da Luz e de Alvalade os seus recreios em cada visita à capital, mostrando que é nos grandes momentos e nos maiores palcos que dá as mais cabais respostas e demonstrações de classe. Pelo meio foi sentado no banco por José Sá. E por Helton numa final da Taça. Como fora anteriormente por César Sanchez. E por Diego Lopez. E por Keylor Navas. Tudo nomes com direito aos seus dignos lugares na história do futebol – alguns uma página, outros um parágrafo, outros uma mera nota de rodapé. Mas Iker Casillas, esse que todos eles à vez sentaram no banco em determinado momento, é muito mais do que isso. Iker é um capítulo inteiro! Disputou esta semana frente ao Liverpool o seu jogo 188 na Champions League, numa noite que não entrará para a galeria das melhores recordações que guarda da prova. É o jogador mais utilizado de sempre na maior competição de clubes de todos os tempos. É o único com 20 participações na Champions e está agora a duas fases de grupos de chegar à épica cifra dos 200 jogos. Vai lá chegar pelo FC Porto, com quem acaba de renovar até 2021. Está escrito nas estrelas.

Voltemos à metáfora de Bukowski, agora que já estamos embriagados pelos números de Casillas. «Há um pássaro azul no meu coração que quer sair mas eu sou demasiado esperto, só o deixo sair às vezes à noite quando está toda a gente a dormir. Eu digo, sei que estás aí, por isso não fiques triste. Depois fecho-o novamente, mas ele está a cantar um pouco ali dentro, não cheguei bem a deixá-lo morrer e dormimos assim juntos com o nosso pacto secreto e é bom o suficiente para fazer um homem chorar, mas eu não choro, tu choras?». Já não, Iker, tu já não choras. E ainda não, Iker, nós ainda não choramos. Mas um dia o fim vai chegar. E nesse dia – que esperamos ainda longínquo – o país inteiro vai chorar contigo. O país? O mundo! O mundo que, em uníssono, entre lágrimas dirá: «Te echo de menos, Iker. Hay un pájaro azul en tu corazón que quiere salir…».