Vicente Alves do Ó. ‘Muita gente não percebe como foi possível eu ter furado todo um sistema’

É como se tivesse sido ainda ontem que vimos Al Berto, a biografia em que, num cruzamento com a história da sua própria família, Vicente Alves do Ó o retratou nos anos que passou em Sines. Em produção está já o filme que completará a trilogia de biopics que iniciou com Florbela, em 2012: um…

É como se tivesse sido ainda ontem que vimos Al Berto, a biografia em que, num cruzamento com a história da sua própria família, Vicente Alves do Ó o retratou nos anos que passou em Sines. Em produção está já o filme que completará a trilogia de biopics que iniciou com Florbela, em 2012: um recuo ao período modernista, à volta da figura de Amadeo de Souza Cardoso. Entre Al Berto, estreado há um ano e meio, e este que se prepara para rodar no próximo ano, Vicente Alves do Ó completou já outros dois filmes: Golpe de Sol, que depois da estreia no Festival de Cinema de Talín não chegou ainda a Portugal, e Quero-te Tanto!. Uma comédia romântica assumidíssima, com Pedro Teixeira e Benedita Pereira como protagonistas, numa coprodução entre a Ukbar Filmes e a TVI que acaba de chegar às salas. Uma história que decidiu contar há 18 anos assim que a descobriu entre as breves do Correio da Manhã. Não muito tempo depois daquele dia em que, «muito miúdo» e «muito parvo», pôs no correio o argumento para um filme com a história de um ex-combatente que daria com a Guiné na mata de Monsanto, endereçado a um nome cuja importância desconhecia: António da Cunha Telles.

A comédia romântica é um género que nunca tinha explorado desta maneira. E é o primeiro filme que estreia comercialmente em Portugal depois do Al Berto. Porquê uma comédia romântica agora?

Isto estava escrito há 18 anos. Surgiu de uma maneira muito estapafúrdia. Estava no escritório do Cunha Telles à espera de uma reunião e ele tinha os jornais do dia numa mesa – o Público, o Diário de Notícias, o Correio da Manhã… Não sou nada sectário, o que apanhar nas mãos, eu leio. Abri o Correio da Manhã, que tem sempre aquelas notícias de crime, às vezes umas breves pequeninas, e havia uma notícia de uma história muito engraçada de um evadido do Estabelecimento Prisional de Lisboa que tinha conseguido escapar graças a uns andaimes que estavam montados na prisão e que tinha sido avistado a rondar a prisão de mulheres de Odemira, a chamada prisão cor de rosa, onde estava a companheira. Tinham sido os dois presos por tráfico de droga, ela ficou em Odemira e ele em Lisboa. Li aquilo e achei hiper-romântico. Em vez de fugir do país, pega nele, deve ter arranjado umas boleias manhosas, e vai para o pior sítio possível, uma prisão, só para a ver. Parece uma coisa medieval: ela presa na torre e ele a ir vê-la.

Que aqui se transforma numa coisa quase de reality show. Aquele pátio da prisão parece o pátio da casa do Big Brother, quando ele aparece para lhe acenar de um balão.

Mais ou menos… Não pensei nisso. Pensei em Jacques Demy, pensei em Almodóvar, não pensei em reality show nenhum. Talvez no fim, quando estão no tribunal e passa uma avioneta com ‘Liberdade Pepê e Mia’. Mas vi aquela história e escrevi. Naquela altura escrevia imenso, escrevia sem objetivo. O objetivo seria a posteriori realizar as histórias mas, como estava a começar, exercitava-me escrevendo. Comédias, dramas, biopics, policiais – tenho lá um policial ainda que gostava de um dia fazer. Lembro-me de o Cunha Telles ter lido aquilo e ter ficado: ‘Você tem noção de que nunca vai conseguir um apoio do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual] para fazer isto? Isto é muito giro, mas não tem a caução intelectual e artística que os júris do ICA exigem para poder apoiar um projeto’. E eu disse: ‘Olhe, está escrito, pode ser que um dia se consiga fazer’. E fomos concorrendo a apoios. Concorri umas três ou quatro vezes. A certa altura ganhou e consegui um coprodutor espanhol mas não tinha [o apoio de] uma televisão portuguesa e perdemos o apoio…

A ideia foi sempre, mesmo com um apoio do ICA, fazer este filme com uma televisão?

Sim, porque a televisão como personagem esteve sempre lá, desde o início. Era uma forma de vender a ideia de que eles se tornavam populares aos olhos dos portugueses, que esta fuga era uma história que apaixonava o país. Hoje seria se calhar mais o Twitter ou o Instagram, hoje a popularidade está muito mais nas redes sociais do que na televisão.

Este elenco está muito assente em atores de televisão também, que mistura com outros com quem já trabalhou, não tão conhecidos.

Gosto muito de fazer isso, de misturar as pessoas. Em Portugal continuamos a ter o problema de os universos serem ainda muito estanques. Está melhor, muito melhor do que quando comecei, há 20 anos: já se veem mais pessoas do teatro da televisão, da televisão no cinema e do cinema no teatro. Ainda assim, acho que continua a haver uma certa relutância em procurar, em querer descobrir atores. Neste filme volto a fazer isso: a ir buscar atores muito conhecidos e a pô-los ao pé de outros de que as pessoas nunca ouviram falar. Mas que são pessoas que trabalham, que têm a sua carreira, os seus trabalhos. São menos conhecidas porque não estão na televisão. Estão no teatro, ou a fazer curtas, ou à espera da grande oportunidade para serem descobertas. Gosto muito de fazer isso e de desafiar o cânone. A pior coisa que me podes fazer, ou a melhor, é quando te digo o nome de um ator fazeres um juízo de valor muito mau sobre ele. Automaticamente, é com essa pessoa que vou querer trabalhar. Porque já senti isso na pele, às vezes ainda sinto. Continuo a ser um bocadinho catalogado, rotulado como uma coisa que ninguém sabe muito bem onde há de enfiar, porque não fiz o caminho tradicional do cinema. Não fiz o Conservatório, não sou filho de nenhuma boa família lisboeta, não vou para o Lux beber copos com as pessoas certas, sei lá. Há muita gente que acha estranho, que não percebe como foi possível eu ter furado todo um sistema. Como se houvesse uma espécie de aprovação que tinha que pedir e não pedi. Tive a sorte de ter três ou quatro pessoas do mundo do cinema que acharam que eu valia a pena. Como o Cunha Telles.

Quem são as outras? 

Hoje, a Pandora da Cunha Telles e o Pablo Iraola, que são a Ukbar. Muito dificilmente me vejo a trabalhar com outros produtores em Lisboa.

Mas, no início, essas «três ou quatro pessoas» foram quem?

O António da Cunha Telles, o António-Pedro Vasconcelos e uma série de realizadores que me começaram a convidar para escrever para eles, numa coisa de querer descobrir quem era este miúdo que andava para aqui a escrever uns guiões. Entrei de uma forma muito prática: ‘Vou ter de trabalhar, vou ter de lhes dar alguma coisa, ou vou-me embora’. Ninguém sabia quem eu era, de onde vinha, perguntavam se o meu nome era verdadeiro ou se era um pseudónimo. Como senti isto na pele, quando ouço falar assim de atores, especialmente os da televisão, que sofrem um bocadinho mais com isso, pois é exatamente com esses que escolho trabalhar.

Vem disso que descreve como uma obsessão aquela ideia já no final do Quero-te Tanto!, de uma produção da TVI que contaria a história do Pepê e da Mia [Pedro Teixeira e a Benedita Pereira], interpretados pela Rita Pereira e o Nuno Lopes?

Foi uma graça exatamente com isso [risos], porque ela é a rainha da televisão, ele é o rei do cinema.

Um par que adoraria juntar?

Não sei se eles aceitariam. Mas seria um desafio com a sua graça. E é mesmo aí que quero que a coisa assente: que se olhe para os atores, e para os filmes, sem preconceitos. Se faço uma comédia romântica, estou a fazer uma comédia romântica, não estou a fazer O Couraçado Potemkin, nem é isso que quero fazer. Quero contar uma belíssima história, daquela maneira, com aquelas ferramentas, e quero, acima de tudo, que o espectador saia da sala com um sorriso nos lábios. Se conseguir isso, para mim o filme está ganho.

Sobre o objetivo de uma comédia…

É a coisa mais difícil do mundo, a comédia. Acho a comédia muito democrática e o drama muito ditatorial.

Porque no drama se está a conduzir o espetador por um caminho decidido à partida?

Se filmar por exemplo uma criança a ser atropelada na rua e tiver uma cena em que a mãe descobre a criança morta e chora, se tu, espetador, não te emocionares, quem está ao teu lado vai achar estranho. O drama quase que pede a tua solidariedade para com a dor. A dor quase que exige isso. ‘Como não choraste quando ela perdeu o filho de 5 anos com meningite?’. Na comédia, se não te rires do gajo que caiu no chão, se calhar vais rir-te de outra coisa qualquer. É muito mais livre. No riso não há esse julgamento. A comédia é muito mais democrática e, por isso mesmo, muito mais difícil. Podes escrever com as regras todas, nunca sabes onde é que as pessoas se vão rir. Mas ainda acredito que é possível fazer-se comédia sem cair no lugar comum da brejeirice, do porno stuff, do palavrão. Tento criar uma comédia mais de situação. Nunca estou a gozar com eles, vejo-os acima de tudo como pessoas, e estou sempre a construí-los de maneira a eles terem dimensão. Os meus personagens favoritos do filme são o casal do Senhor António e da Concha, que não têm filhos mas têm aquele amor todo para dar. Um gajo que está no Alentejo mas que depois lê os Cahiers du Cinéma… Tentei dar-lhes humanidade. Estava sempre a repetir isso – ‘têm de ser pessoas, não podem ser bonecos’ – para mim e para os atores.

Alterou muito aquele primeiro argumento quando partiu agora para a rodagem ou continua surpreendentemente próximo da primeira versão? 2001 foi há muito tempo. Como é que se regressa a um filme escrito há quase 20 anos?

Surpreendentemente próximo. A parte mais divertida de fazer este filme agora foi perceber que não perdi aquele meu lado de gaiato alentejano. Que está intacto – e sabe Deus as razões que já tive para o ter perdido. Percebo melhor agora porque me interessei tanto pelo Amadeo [de Sousa Cardoso, sobre quem está a preparar o seu próximo filme]: porque, até morrer, o Amadeo foi isso. Porque ele desconstrói a ideia do artista maldito, do artista que precisa da dor e da depressão para criar. Ele diz que a arte deve ser solar, diz que a vida é bela e que temos que construir as coisas como quem constrói o sol. Isto vai contra tudo, especialmente na época modernista. O melhor amigo dele, o Modigliani, tem uma vida desgraçada, e cultivou-a de certa forma até morrer. Não sendo inteiramente assim, também acredito nisso. Este filme também serviu para perceber onde é que estou depois de 20 anos em Lisboa, a fazer filmes – a lutar para fazer filmes.

Como é que veio para Lisboa?

Vim por causa do pai da Pandora. Escrevia argumentos ‘caseiros’, digamos assim. Vivia em Sines, trabalhava na Câmara municipal, na altura na secção de obras.

Na secção de obras? A fazer o quê?

De castigo. Tinha estado no Centro Cultural Emmerico Nunes com o Al Berto, o centro fechou e, como era funcionário da Câmara, fui para a secção cultural. Depois zanguei-me com o presidente da Câmara e fui posto na secção de obras. Porque o afrontei.

Tinha que idade?

Uns 24 ou 25. Tinha concorrido ao Conservatório duas vezes e não entrei, pensei em desistir, pensei ‘vou escrever livros e teatro e ficar por aqui’ e lembro-me de uma amiga, a Maria José, me dizer ‘mas tu queres fazer cinema’ e de lhe responder: ‘E então? Não consigo entrar no Conservatório, estou aqui na secção de obras a fazer ofícios com despachos de arquitetos e a olhar para plantas, vou fazer o quê?’. Então ela disse-me: ‘Olha, li no outro dia alguém a dizer numa entrevista que há muito poucos argumentistas em Portugal. Se gostas de escrever, porque é que não escreves argumentos?’. Falou como se fosse uma coisa fácil. Mas fiquei a pensar naquilo e comecei a tentar perceber como é que se escrevia um argumento. Lembro-me de vir a Lisboa, à primeira Fnac, a do Colombo, e de descobrir um livro: ‘como escrever argumentos’ – de televisão, na altura, que era o que havia. A secção de cinema da Fnac era minúscula, não havia quase nada. Isto no pré-internet ainda, em 1997 ou 98. Comecei a descobrir como é que se escrevia e a escrever. Primeiro umas histórias um bocado estapafúrdias, mas depois parei e pensei que maneira de conseguir dar alguma densidade a alguma história era escrever sobre uma coisa que conhecesse bem. Então escrevi um argumento, que acabou por ser o meu primeiro argumento a ser realizado, pelo Ruy Guerra.

O Monsanto. 

Sobre os soldados do Ultramar, porque tive dois irmãos que estiveram na guerra e assisti muito de perto ao comportamento deles no pós-guerra. Continuo a achar que foi das minhas melhores ideias: um homem que pára de tomar a medicação, vem a Lisboa a um almoço de ex-combatentes e tem um acidente, o carro despista-se. Quando acorda, pensa que está na Guiné, no meio da guerra. Não há flashbacks, não há nada, passa-se tudo nos dias de hoje. Ele transforma Monsanto num campo de batalha. É horrível, de duro.

Mas como é que esse argumento chegou às mãos do António da Cunha Telles?

Eu não conhecia ninguém. E era muito parvo. Vim a Lisboa passar um fim de semana e fui à Fnac. Havia um livro que custava cinco contos, nunca mais me esqueço. Cinco contos era muito dinheiro, não podia ser. Conheço a pessoa que fez esse livro e, hoje, volta e meia, a gente ainda se ri com isto. Era o Guia do Audiovisual Português. Pensei ‘não posso comprar isto, vou ali sentar-me e tirar umas moradas de produtores’. Feito estúpido, tirei um. Um nome. De uma lista. ‘A: António da Cunha Telles. Pronto, é este’. Voltei para Sines com um nome e uma morada. Achas normal?

Só porque era o primeiro? Não sabia então quem era o António da Cunha Telles.

Não fazia a mínima ideia. Tirei o primeiro e acabou. Cheguei a casa, o argumento estava pronto, corrigidinho, bonitinho, no formato que tinha percebido que era o formato de argumento… Envelope, uma cartinha de apresentação só a dizer «Exmo. Sr. António da Cunha Telles, junto envio o argumento para o filme Monsanto. O meu telefone é… Com os melhores cumprimentos, Vicente Alves do Ó.» Não disse mais nada. Não disse ‘sou um jovem, de 26 anos, com o sonho do cinema’, nada!

Se calhar foi o certo.

Acho que há sempre uma razão para a forma como as coisas acontecem na vida. E, pronto, pus aquilo no correio, fui à minha vida e nunca mais pensei naquilo. Mas o que é que aconteceu? A morada que vinha no guia não era a morada da produtora, era a morada da casa do António, portanto aquilo não foi recebido por uma secretária. Foi recebido por ele. Que ia almoçar todos os dias a casa e, naquele dia, chegou e a empregada disse-lhe: ‘Sr. António, queimei o almoço. Está aqui o correio, que chegou agora. Entretenha-se enquanto faço outra coisa qualquer’. Ele abriu aquilo, achou que o meu nome devia ser um pseudónimo, diz que não percebeu nada da carta, mas diz que logo naquela noite leu o guião. Estava a preparar o projeto dos telefilmes da SIC – eu tinha escrito aquilo para cinema, mas ele precisava era de guiões para telefilmes. Havia uma cerimónia de homenagem ao Ruy Guerra, que estava cá, ele pensa ‘quem realizava isto muito bem era o Ruy Guerra’, que ainda não tinha feito nada em Portugal, leva o guião para a Cinemateca, passa o guião ao Ruy Guerra, que nessa noite leu o guião no hotel. Na manhã diz ‘quero fazer isto’ e mandam aquilo para a SIC…

E aí o António da Cunha Telles ligou-lhe?

Ligou. Só que eu não atendi. Levei uma semana para atender. Estava a trabalhar, aquilo era o telefone de casa, eu não sabia… e eles não tinham outra maneira de falar comigo. Até que há um dia em que estou em casa e o telefone começa a apitar. Aproximei-me: ‘Mas isto é o quê?’. Era um daqueles telefones novos com voice mail.

Que não sabia usar?

Nunca tinha usado. Ligo para a minha mãe, estás a ver a personagem que eu era: ‘Ó mãe, o telefone está aqui a fazer um barulho esquisito, isto é o quê?’; ‘Então, filho, isso é o gravador de chamadas. Agora quando não estás em casa e as pessoas ligam a chamada vai para um atendedor que está incorporado no telefone’. Tinha 70 chamadas, uma maluquice. No dia seguinte estava a almoçar em Lisboa e seis meses depois estava a viver cá. Trabalhei no Monsanto, depois pediram-me que escrevesse mais, queriam ler guiões…

Nessa altura tinha a ambição de ser realizador?

Quis ser realizador desde a primeira vez que concorri ao Conservatório e não entrei, em 1992. As pessoas às vezes não sabem e não perguntam também: durante uns anos a imprensa foi muito mazinha, diziam ‘olha aquele escreve argumentos e agora também quer ser realizador’. Antes de ser argumentista, será que eu existia? Se calhar não existia. O argumento foi a minha forma de entrar. E levou tempo até ter o meu primeiro filme.

Dizia que escreveu o Monsanto para cinema. O problema de se ser apenas argumentista também é esse: a falta de controlo, muitas vezes, sobre aquilo em que se transformará o que se escreveu.

É terrível. Há muito tempo que não escrevo para outras pessoas, mas já mandei tirar o meu nome de algumas coisas. Protejo-me nos contratos. E, sim, perdes completamente o controlo. Agora, é muito engraçado: o Vicente-realizador é chato com o Vicente-argumentista. O Vicente-realizador diz ‘esta cena não serve para nada’. E corta.

São duas pessoas?

Completamente. O realizador não tem paciência para metade do que o argumentista escreve. Corto-me. E eles fartam-se de rir. Lembro-me de um almoço de produção do Monsanto. Tinha acabado de fazer 27 anos e tinha as cabeças todas coroadas, como eu lhes chamava, 15 pessoas, numa mesa. O Cunha Telles, o Ruy Guerra, a direção da SIC, os diretores de produção, o script doctor, e estávamos a ler o guião. Líamos uma cena, eles analisavam-na e diziam-me o que tinha de mudar e de fazer ali. Eu apontava tudo para depois ir trabalhar. Ali tive a minha primeira lição de: ‘Meu querido, é assim: nada aqui é sagrado. Essa frase que tu mais adoras? É um work in progress para outra coisa qualquer’.

Isso custou-lhe?

Na altura foi muito duro. A partir daí, nunca mais tive problemas com isso. Só tive problemas com um filme. Foi um filme até realizado pelo Cunha Telles, curiosamente a última coisa que o Cunha Telles realizou: o Kiss Me, com a Marisa Cruz. Porque era um argumento original meu que depois uma pessoa que ele contratou trabalhou da maneira que ele queria. Mas era a história de amor dos meus pais. E ele alterou muito, mudou muita coisa. Entre o guião que eu escrevi, que foi o que ganhou o apoio do ICA, e o que chegou ao ecrã… Hoje em dia damo-nos muito bem, mas na altura cheguei a ficar zangado com ele por causa disso. 

Falávamos das expectativas em relação ao Monsanto. Diz que acha, ainda hoje, que foi a melhor ideia que já teve. Parece-lhe que foi um desperdício transformá-lo num telefilme?

Fiquei muito triste quando percebi que ia ser um telefilme, mas foi muito importante para mim. Foi a forma de entrar no meio, que era difícil. Só ganhei o primeiro apoio em 2008. Acho que precisava da dimensão do cinema. E de um bocadinho mais de dinheiro – notava-se, nalgumas coisas, a falta de orçamento. Ficou reduzido à televisão, mas acho que é um excelente telefilme. É das melhores coisas que escrevi. E é giro veres o Quero-te Tanto! e veres o Monsanto e pensares que foram escritos pela mesma pessoa. Foram. E quase na mesma altura.

Ao contar de onde veio a ideia para o Quero-te Tanto! disse que não é sectário ou preconceituoso. Isso define a forma como faz filmes? O que gostava de fazer depois do que está a preparar sobre o Amadeo de Souza Cardoso?

Gosto dos géneros todos. Há só um, que sei que faz muito sucesso no mundo, e em Portugal, para o qual nunca tive nenhuma ideia: o terror. Se calhar é por saber que nunca vou fazer um filme de zombies que brinco com zombies no Quero-te Tanto!. Talvez uma história de fantasmas… mas teria de ser uma história muito boa. Sou um grande fã do The Haunting [1963], do Robert Wise. É o meu filme de terror favorito – e fico mesmo aterrorizado, sou daquelas pessoas que não podem ver um filme de terror à noite porque depois não dormem. É assim o único género que não me atrai. Agora, policiais, um murder mystery, à Agatha Christie, quero fazer, há alguns episódios históricos que gostava de fazer… Tenho umas ideias para umas coisas a misturar documentário com ficção, que é uma coisa que também está na moda agora. Se calhar vou chegar a uma altura em que me especializo nalguma coisa, mas gostava de não me especializar em nada. Sou filho de muita coisa.

É filho de quê?

Sou filho de muita coisa porque não tive uma educação clássica. Não fiz um curso superior clássico, não tive uns pais clássicos, não tive uma pessoa que me explicasse por onde é que se começa a ler, por exemplo.

E por onde começou?

A minha relação com a literatura é completamente maluca. Dou-te uma história que já contei uma vez, que é uma história que me define, e um dia há de haver um filme sobre isto: lembro-me perfeitamente do dia em que tinha 7 anos, a caminho dos 8, e saí de casa a dizer à minha mãe ‘vou tratar da minha vida e venho já’ [risos]. Saí de casa, entrei na Biblioteca Municipal de Sines, inscrevi-me – era o sócio número 33 – e requisitei três livros. Se me perguntares o quê, não me lembro. Não tinha livros em casa, a minha mãe não era uma mulher dada à literatura. Lembro-me que ficava fascinado com os livros grandes. Queria livros com muitas páginas. Depois, saí da biblioteca e, ao lado, uma rua abaixo, ficava a igreja: fui inscrever-me para começar a fazer a catequese. Porque acreditava em Deus e queria ser batizado e fazer a primeira comunhão. Porquê? Porque tinha visto na televisão aquela série do Jesus de Nazaré, do [Franco] Zeffirelli, e chorei imenso com o Cristo a morrer crucificado. Comecei a acreditar em Deus através da televisão.

E continua a acreditar?

Continuo a acreditar em Deus. Tenho muitos problemas com a instituição, mas sou um homem de fé. A minha mãe disse-me: ‘Queres? Então vai!’. Às tantas disse: ‘Mãe, descobri que há uma coisa mesmo fixe, com uns livros e umas revistas que a gente escolhe e eles vêm trazer a casa’.

Era o Círculo de Leitores.

‘Posso inscrever-me, mãe? É só um livro de três em três meses, vá lá, vá lá…’; ‘Podes’. E lá veio a senhora do Círculo de Leitores. Fui sempre um puto que procurou, nunca tive ninguém a dizer-me ‘agora vais ler os russos’, ‘agora o Charles Dickens’.

E em Sines era fácil encontrar?

Sines, apesar de tudo, acabou por ser um sítio onde tive muita coisa disponível, sim.

O Al Berto foi fundamental nisso.

O Al Berto foi muito importante em Sines por isso. Sines não era uma cidade, era uma vila, e havia muita pobreza, mas havia assim uma ou duas livrarias, havia uma gente que lia… Falo um bocadinho disso no Al Berto [2017]. O meu irmão João Maria era um grande leitor, o meu irmão Chico, que ainda é vivo, graças a Deus, tem 70 anos, também, apesar de também não terem vindo de uma família que lesse muito. Parece que é uma coisa meio espontânea nossa, porque nem sequer cresci com eles. Percebemos isto já adultos. Mais tarde, quando conheci o Al Berto e essas pessoas todas [que o rodeavam], eram pessoas muito livres, muito pouco preocupadas com aquilo que pensavam sobre elas. Acho que hoje em dia as pessoas procuram muito vender uma imagem de si mesmas através dos seus gostos.

Essa convivência com eles foi formadora?

Acho que a convivência com eles me permitiu acreditar na liberdade. Sou muito livre. Não tenho problemas nenhuns com o que ficas a pensar sobre as coisas que compro, as peças a que vou ou os filmes que vejo. E fui descobrindo que as pessoas são muito assim.

Com os filmes que vê, ou com os filmes que faz.

Ou os filmes que faço. As pessoas são muito assim: ‘Ah, tu gostas disso? Então não sei se dá para a gente se dar… estás a perceber?’. O Al Berto não era assim, o João Maria não era, e isso ficou em mim. Essa liberdade de ação, o não ter medo de existir naquilo que se é. Não estou muito preocupado com aquilo que os outros pensam. Magoa-me, às vezes, quando pensam coisas horríveis. Às vezes dizem de mim coisas horríveis. Pessoas que nem me conhecem, que nunca tomaram um café comigo. Às vezes contam-me: ‘Aquele gajo odeia o que fazes, diz que és não sei o quê’. Porque é que não tomam um café comigo para poderem ao menos falar com propriedade?

Está a falar do que dizias no início, de as pessoas se questionarem sobre como chegou aqui?

Sim, acho que isso continua a existir.

E como é que chegou? O que acha que lhe permitiu estar agora a estrear um filme que, há 20 anos, o António da Cunha Telles lhe disse para esquecer, que nunca conseguiria um apoio?

Com um envelope nos CTT [risos]. Tentas ad aeternum até que um dia, de tanto bater… Acho que tive sorte. Acho que às tantas passou ali por um concurso com um júri fixe que leu aquilo e disse ‘isto não é Os Maias, mas é giro’.

E aqui entramos na discussão sobre que tipo de filmes deve ou não deve poder ser apoiado por dinheiros públicos.

Já não discuto isso. E acho que essa conversa devia acabar, porque é tudo mentira: o nosso meio é demasiado pequeno para que qualquer cinematografia se sustente no privado. Não se consegue.

O que defende é um sistema bipartido, no fundo. Com concursos diferentes para filmes com objetivos diferentes, correto?

Sim. O sistema belga ou o sistema francês, por exemplo, são sistemas que separam. O critério é: qual é o objetivo? Depois, o que o filme tem que fazer é cumprir-se no seu objetivo. Imagina: queres fazer um filme arte e ensaio e escreves ‘o meu objetivo é ir a x festivais’ e o que é analisado são os teus objetivos, com os quais tens de cumprir minimamente. Imagina, se concorro com um Astérix: ‘Quero levar um milhão de pessoas ao cinema’. Pronto, dão-me dinheiro para levar um milhão de pessoas ao cinema. E depois presto contas com aquilo que disse que era ou não capaz de fazer. [A solução] não é misturar-nos. O Quero-te Tanto! não pode estar a competir com Os Maias. E é ridículo dizer-se que só um dos dois é que é válido. Claro que estas discussões existem porque não há dinheiro [público] para o cinema. O problema é que o privado também não consegue sustentá-lo. Se eu fosse produtor de cinema e fizesse comédias tinha de ter uma média de 300 ou 400 ou 500 mil espetadores por filme para poder fazê-los sem precisar do ICA.

Mesmo esse número, 300 mil, é curto.

É o mínimo para uma produçãozinha em que ninguém fique a arder com o seu ordenado. Não dá para um filme de época, por exemplo. E estas coisas têm todas que existir, porque não se sabe, de facto, o que vai ficar. Como há pouco dinheiro, andamos à batatada uns com os outros, a dizer ‘o meu é melhor do que o teu’, ‘o meu é mais válido que o teu’, ‘o meu é mais interessante do que o teu’. E com isto está a criar-se um engano.

A questão não é uma questão de melhor ou pior, é sobretudo uma questão do que é ou não válido.

Mas dizeres-me que vais fazer uma coisa histórico-antropológica sobre as ceifeiras de Montemor-o-Novo não garante que o teu filme vai ser bom. O problema aqui em Portugal é que se parte sempre do princípio de que arte e ensaio é sempre bom. É isso que me tira do sério.

Sente isso?

É sempre bom. E há sempre uma explicação para tudo. O Miguel Ângelo nunca precisou de folhas de sala que explicassem as obras dele. Em Portugal, hoje em dia, são precisas folhas de sala para explicar o que a gente está a ver ou a gente perde-se. Alguma coisa está a falhar.

A questão de ter enveredado pelas biografias históricas [Florbela e Al Berto, aos quais se juntará outra sobre Amadeo de Souza Cardoso] teve a ver com saber que seria um tipo de filme que mais facilmente conseguiria apoios do ICA?

Acho que há um determinado tipo de cinema mais facilmente apoiado, sim. E quando olhas para a lista de filmes a cada concurso percebes que cada um tenta encontrar a sua estratégia para chegar ao dinheiro, claro. Ou com filmes históricos ou com adaptações de romances ou num género que venha mais do Cinema Novo… ou então tens a sorte de já ter estado em Berlim ou em Cannes. Aí apresentas o que quiseres que já ninguém te diz que não.