O combustível dos populismos…

O pequeno sindicato dos camionistas (cerca de 800 sócios), que quase paralisou o país em poucos dias, é de geração recente e independente das duas centrais. Pôs o Governo em ‘alerta vermelho’, depois de este ter negligenciado, primeiro, o pré-aviso de greve. E ‘estreou-se’ com ruído.

Há um fio condutor no novelo das greves dos enfermeiros ou dos camionistas de transportes de matérias perigosas: são estruturas sindicais que se afirmam por uma grande resiliência e espírito de corpo, marginais ao controlo do PCP-CGTP.

O sindicalismo enquadrado nas duas centrais tem vindo a perder terreno, em número de filiados e em capacidade de mobilização, e tanto a CGTP como a UGT sabem disso, embora prefiram escamoteá-lo. 

A ‘era de ouro’ do sindicalismo dos anos 80, quando um em cada três trabalhadores estava sindicalizado, há muito que perdeu fulgor. Hoje, nem um em cada dez continua sindicalizado. 

Segundo um estudo do Banco de Portugal, entre 1980 e 2010 o universo dos trabalhadores sindicalizados em Portugal caiu 48 pontos percentuais. Ou seja, passou de 59% para 11%. 

Após a saída da troika, a taxa de sindicalização continuou a diminuir. De acordo com dados conhecidos do Livro Verde das Relações Laborais, a percentagem de trabalhadores com vínculo sindical baixou, em 2016, para 8,3%.

O pequeno sindicato dos camionistas (cerca de 800 sócios), que quase paralisou o país em poucos dias, é de geração recente e independente das duas centrais. Pôs o Governo em ‘alerta vermelho’, depois de este ter negligenciado, primeiro, o pré-aviso de greve. E ‘estreou-se’ com ruído.

Há várias lições a reter de um fenómeno novo, que é o aparecimento de sindicatos autónomos, com forte capacidade reivindicativa, fugindo à lógica político-partidária e impondo-se pelos seus próprios trunfos. 

A ‘greve cirúrgica’ dos enfermeiros nos blocos operatórios, patrocinada pela Ordem – e por uma bastonária com apetência mediática -, poderá ser integrada nesse mesmo conceito, fora dos cânones pastoreados pela CGTP. 

Em ambos os casos, o Governo foi lesto em decretar a requisição civil, o que não aconteceu, por exemplo, com os estivadores no Porto de Setúbal, que bloquearam longamente o escoamento dos carros produzidos pela Autoeuropa, com prejuízo das exportações. Mas essa paralisação tinha o apoio do PCP-CGTP, parceiro da ‘geringonça’.

Na greve dos camionistas, António Costa levou tempo a convencer-se de que o caso era sério. Atuou ao retardador e somente quando percebeu que a Páscoa sem combustíveis poderia trazer-lhe mais dissabores eleitorais.

Soube-se, entretanto, que o projeto de um oleoduto para alimentar o aeroporto da Portela – seguindo o exemplo da maioria dos aeroportos internacionais -, está adormecido na gaveta há quase uma década. 

O alheamento não é exclusivo do atual Governo. Mas entende-se mal que, face ao crescimento do afluxo de turistas por via aérea, nada se tenha feito para garantir o abastecimento regular do aeroporto, que teria ainda a vantagem de retirar centenas de camiões cisternas da estrada. 

Ficou mais uma vez demonstrada a vulnerabilidade do país – e de como se passa da displicência à histeria num curto intervalo. 

Se a greve dos camionistas tivesse durado mais 48 horas, o açambarcamento não teria ficado apenas pelos combustíveis.

No meio desta crise, o pormenor bizarro foi o desaparecimento do fogoso ex-deputado e atual secretário de Estado da Energia, João Galamba, ausente em parte incerta, enquanto a liderança negocial com os camionistas e patrões ficava a cargo do ministro Pedro Nuno Santos, o ‘jovem turco’ do PS, que fez o papel de ‘pronto-socorro’ de Costa. 

Outra lição é que não basta ter o PCP e o Bloco ao lado para conseguir a ‘paz social’, em particular quando se ‘decretou’ demagogicamente o fim da austeridade.

Nesta como noutras áreas, sente-se um Governo errático e fragilizado. Quem diria, por exemplo, que a lista de doentes em espera nos hospitais públicos tinha sido falseada pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), ao eliminar pedidos mais antigos de primeira consulta? 

As conclusões são de uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas ao triénio 2014-16, confirmada pelo grupo técnico independente nomeado pelo Governo.

A auditoria coincidiu, por acaso, com o período da gestão de Marta Temido, atual ministra da Saúde, à frente da ACSS. 

Apesar da gravidade das conclusões dos relatórios, a ministra não se deu por achada. E procurou depois a Lusa para ‘sacudir a água do capote’ e dizer-se vítima de uma «suspeição intolerável», tentando de caminho desacreditar o trabalho do Tribunal e do grupo técnico. 

O documento do TdC é arrasador. Basta lê-lo. Na entrevista, a ministra fingiu, primeiro, que não era nada com ela, demitindo-se de responsabilidades, sem retirar as consequências. E para desviar as atenções, promoveu uma sindicância inédita à Ordem dos Enfermeiros.

São comportamentos como este que desacreditam o Governo. É o combustível ideal para aditivar os populismos.