Cicatrizes por abrir…

O rio Chu é a fronteira. Antes proibiram os quirguizes de serem quirguizes e os uzbeques de serem uzbeques. 

Esta história podia começar assim: «Pozvoni mne Alek», chamam-me Alek, tal e qual o Ismahel de Melville.

Alek é polícia. Quando nos mostrou o cartão, ficou inchado de orgulho e ele já é assim um bocado para o pescoço de boi. Conheço-lhe bem o pescoço. Afinal viajei no banco de trás do carro que conduziu de Almaty até Bishkek e volta. O banco era confortável. O pescoço, teimoso. Inamovível. Alek: se tiveres um ferro galvanizado enfiado desde o esfíncter até às amígdalas eu acredito, mas por favor não o confesses publicamente. Há coisas que é preferível ficarem entre nós…

A estrada vai percorrendo a taiga, com os picos de neve de Zailiyskiy Alatau acompanhando-nos do lado esquerdo, quatro, cinco mil metros de altitude, o topo de Talgar a 5017, primeiro Kaskelen, depois Uzynagash, terriolas perdidas na estepe, cavalos famélicos à porta de casas de telhados de zinco, uma vaca ou outra, corvos em bandos mergulhando furiosos no fresco dos ulmeiros, o céu de Verlaine, por cima, tão azul e tão calmo. Alek voa aos ziguezagues fugindo aos buracos, de repente um bocado de autoestrada, a seguir um naco de cimento assassino de suspensões, depois um desvio de terra batida para as obras infinitas de uma via futura, nomes curiosos, fascinantes, gosto de nomes estranhos, gosto de viajar atrás de nomes: Samsi, Targap, a curva larga que leva a Kurday, e depois Alga, e depois Korday.

O sol mudou de lugar ou fui eu? Fecho os olhos, quase dormindo, um calor de primaveras antigas que cheiravam a laranjas e a camélias e a dióspiros desbeiçados no chão atraindo as vespas no jardim de casa dos meus avós, em Águeda, num tempo que não volta nunca mais. Mas lembro-me de caiarem os pés dos troncos das árvores, como aqui, para refletirem as luzes dos automóveis, não era?

Paramos numa aldeia e não lhe descubro o nome. Isso aborrece-me. Todos os lugares devem ter um nome, até Tule tinha quando era o fim do mundo. Uma mulher de cabelos vermelho vende frutos vermelhos: morangos e ameixas; a mesma mulher de cabelos laranjas vende frutos cor de laranja: laranjas, alperces, nêsperas. Na minha infância a branco e preto havia tantas cores! E eu, entretanto, perdi a cor.

Nada como atravessar uma fronteira a pé. De país para país, a passo calmo, apreciando o rio.

O rio Chu é a fronteira. Ele e a ponte velha de ferro. De um lado o Cazaquistão, dou outro a Quiguízia. Fica melhor assim: Quirgízia. Melhor que Quirguistão e o exageros de países acabados em ‘ão’, esse ditongo que devia ser propriedade só nossa, registada com patente. A meio da ponte, uma velha senhora vestida de preto, está sentada na estrutura de cimento e de mão estendida. Pede dinheiro a quem? Aos que vão ou aos que vêm? Mulheres gordas carregando sacos de mercadoria barata num contrabando de pechisbeque. As palavras às vezes rimam com a força de cicatrizes por abrir. Pechisbeque para Bisqueque, diz que assim se escreve em português. Que tem Portugal que ver com o que se passa na música distante Borodin que me entra pelos ouvidos com o vento frio que vem, rasteiro, do sopé das montanhas do Pamir?

Mesquitas raquíticas por entre a folhagem rasteira. Faces esticadas de vento, alongando os olhos, retesando a pele. Leninskoe fica aí, a vinte quilómetros. «Toi Vladimir Illich… Le temps s’est écoulé il a passé pour rien/Puisqu’aucun dieu du ciel ne s’intéresse à nous/Lénine relève-toi/Ils sont devenus fous!».

Não sei se Lenine conhecia o Épico de Manas, dos seus descendentes e do seu inimigo indiano Ravi. Eu li-o e fiquei a saber a história dos quirguizes, o povo das quarenta tribos que estão nos quarenta raios que explodem no fundo vermelho da bandeira.

Nura é uma mulher insistente. Mesmo chata, se quiserem. Tem como ganha pão acompanhar clientes aos quartos do hotel e nem eu quero companhia nem quero regressar ao quarto. Estou a tentar ler um livro sobre Kanatbek Begaliev, o lutador greco-romano que quis passar a ser quirguize-cazaque. Mudou de país como quem muda de camisa, talvez mais depressa do que atravessámos a pé a fronteira sobre o rio Chu. Nura: cala-te, por favor.

Bishkek é Almaty em pequeno e humilde. Alek leva-nos a um restaurante uzbeque chamado Bukhara. Há muitos anos, estive em Bukhara, a cidade onde tudo é tão azul que parece não haver cor. Bebemos um copo de vinho da Geórgia e o polícia ri-se muito, mostrando um dente de ouro escondido nos queixais.

Durante o tempo da União Soviética proibiram a publicação do Épico de Manas. Proibiram uzbeques de ser uzbeques, de cazaques serem cazaques e de quirguizes serem quirguizes. Sentada na ponte a mulher de preto sabe a verdade. O álcool desfolha-lhe o cérebro. Tem a suprema elegância de nunca ter existido.

afonso.melo@newsplex.pt