Os ex votos de Elvas. Preces que são História

A mais vasta coleção de ex votos do país está em Elvas. Ao todo, são mais de seis mil as promessas pagas ao Senhor Jesus da Piedade, devoção que começou há mais de trezentos anos. O b,i. foi até lá na companhia do Terras Sem Sombra, o festival que, à 15.ª edição, continua a primar…

Os ex votos de Elvas. Preces que são História

Se há lugar onde as paredes falam é aqui. Contam histórias de alegrias e tristezas, testemunham ‘milagres’, falam de preces mais ou menos bem atendidas. Estamos na Igreja do Nosso Senhor da Piedade, em Elvas, construída no século XVI, nos então arrabaldes da cidade, e que é ventre de uma das maiores, senão a maior, coleção de ex votos do país. Chegámos até aqui juntamente com perto de uma centena de visitantes, pela mão do Terras Sem Sombra, o festival de música, património – natural e edificado – que à 15.ª edição continua a divulgar e acarinhar o património do Alentejo, tendo já até cruzado a raia e chegado a algumas localidades além Guadiana.

Introito feito, voltemos ao som das paredes e à história dos ex votos, que caminha entrelaçada com a posterior edificação da Igreja onde os visitantes se sentam para fugir do já apreciável calor que se faz sentir. À entrada, porém, uma placa evocativa em memória do padre Manuel Antunes, benemérito e fundador da igreja a 17 de fevereiro de 1737, desvenda já que este será um personagem de vulto no local. E foi efetivamente por ação deste pároco que se principiou o culto ao senhor da piedade, explica o atual padre, José António Gonçalves. Era naquele lugar «fora de portas» que o padre Antunes – na altura ao serviço da Sé de Elvas [extinta em 1881] e que desempenhava as suas funções ministeriais na própria catedral -, mantinha «pequeno hortejo». Tinha 38 anos quando um certo dia, a caminho da horta, cai da mula, e logo diante de «uma cruz tosca feita de dois paus, que assinalava o local onde tinha ocorrido uma morte», prossegue o padre Gonçalves. «Muito ferido e combalido da queda, olhou para a cruz e pediu auxílio divino para as suas maleitas. E fez um voto ­[que, em latim, significa promessa]: o voto de divulgar e difundir a piedade de Jesus se Jesus tivesse piedade dele». O padre Antunes recuperou do acidente – «conjugando assim a vontade de Homem e de Deus», nota o pároco Gonçalves – e, para pagar a sua promessa, a primeira coisa que faz é construir a pequenina capela hoje situada por detrás da capela-mor da Igreja. E manda pintar «a primeira cruz, colocada no nicho superior, e que é considerada o primeiro ex voto».

O que é, então, um ex voto? À letra, traduz-se como ‘por causa de um voto’. «Ou seja, é algo que se dá, ou que se faz, por causa de um voto, de uma promessa que fez», traduz o padre Gonçalves. E, como veremos mais à frente, aqui há ex votos de todos os tipos que testemunham quer a originalidade como a passagem dos tempos.

Pouco depois de a pequenina capela ter sido erigida, as pessoas – primeiro, da região – começaram a frequentar o local a «sentir na sua vida particular a piedade, o auxílio». Começaram então a entregar ex votos e promessas, costume que se manteve até aos dias de hoje. A coleção hoje ronda os seis mil ex votos, que são um interessante e profícuo documento histórico. Ali podem ser encontrados elementos etnográficos, culturais, marcas da vida de todos os dias e da paisagem agrícola, assim como pinturas dos móveis das casas dos ‘abençoados’ e inúmeras representações de fardas, quer em pintura quer em retrato, que constituem um espólio inestimável. É, no fundo, a história da região contada através destas preces.

 

Das telas à cera

Os primeiros ex votos começaram a ser pequenas pinturas em telas e folhas de alumínio ou latão, mais tarde em fotografia e, nos tempos mais recentes, as partes do corpo em cera são as ‘oferendas’ mais comuns. Ao centro de uma das salas que entretanto foram completando a capela primitiva, um ex voto peculiar: uma representação da Igreja do Nosso Senhor da Piedade construída com recurso a oito mil fósforos e que terá demorado mais de seis meses a ser feita. Nas paredes quase não vemos espaços vazios: há telas pintadas, outras onde foram tecidas flores e outros enfeites, uns em seda, outros em materiais menos nobres. Há ex votos em ponto de cruz e em cortiça e cada um deles retrata, ao fim ao cabo, as classes sociais e a ocupação dos agraciados pelas bênçãos do Senhor da Piedade. E quem tinha mais posses dava-se até ao luxo de encomendar os ex votos, tendo na zona existido artificies especializados neste trabalho.

Muitos dos ex votos são acompanhados de legendas, onde os crentes descrevem as dádivas que receberam. Um dos mais divertidos destes registos, e que de momento está guardado nas reservas da Igreja – a necessidade imediata de conservação é um problema sério – descreve uma situação inusitada, com o devoto a agradecer ao Senhor da Piedade por, ao ter caído da sua mula, ter partido apenas uma perna e não as duas. Noutro voto localizado na capela primitiva, por exemplo, uma crente, Anna Joaquina «de Monçaraz», diz que este voto se prende com o «milagre que fez o senhor da Piedade», depois de ter estado em perigo de vida «por um tiro que lhe desparou um malvado da mesma freguesia, ferindo-a no hombro direito». A data desta legenda é de difícil leitura, mas aparenta apontar para o ano de 1893.

 

A fotografia e a devoção pelo mundo

No século XX, os testemunhos das agruras da Primeira Guerra Mundial podem ler-se aqui. Foi então que os crentes começaram a doar fotografias, e é por essa razão que aqui existem dos mais «antigos retratos da história» do país. Durante os anos 60, com a guerra do Ultramar, multiplicaram-se os retratos de soldados, que cobrem na quase totalidade uma das salas, e as suas legendas falam de soldados que voltaram salvos dos horrores da guerra, assim como de outros que, tendo sofrido ferimentos, não perderam a vida. Mas há também retratos deixados por mães que, simplesmente, agradecem que os filhos não tenham sido chamados ao combate.

Durante as legendas dos ex votos deixados no século passado, é bem visível que as graças do senhor da Piedade já eram procuradas por pessoas de lugares muito distantes, sendo que há votos que «nos levam pela Europa fora», reflete José António Falcão, historiador da arte e diretor-geral do Terras Sem Sombra e que ressalva que o espólio descansa num «contentor adequado»: a própria igreja do Senhor Jesus da Piedade. É «uma das grandes joias do barroco alentejano, um edifício extremamente avançado e erudito para o seu tempo», nota o historiador da arte, sublinhando as ligações do edifício ao barroco brasileiro da chamada arquitetura de torna-viagem.

 

Pilhagem, desafios e conservação

Já antes dos ex votos que nos chegam de outras latitudes, realidade mais comum à medida que os tempos vão avançando, outros estrangeiros que por ali passaram quiseram levar consigo um bocadinho da proteção divina do lugar – durante as invasões francesas, os exércitos napoleónicos rasgaram várias cruzes na capela primitiva que levaram como amuleto. A mutilação é hoje testemunhada pelos espaços vazios que ainda lá estão.

Esta foi uma das pilhagens a que o culto sobreviveu sem se desvirtuar. E se é verdade que noutros lugares do país há coleções de ex votos, também é facto que nenhuma tem esta dimensão nem vai tão atrás no tempo. «No século XIX houve muitos lugares em que este material foi erradicado», explica José António Falcão. Isto porque, a dada altura, a Igreja começou a olhar de lado para os grandes centros de devoção popular e tentou refrear o fervor dos crentes. Os elvenses não só não o permitiram como, nos nossos dias, continuam a venerar e acarinhar o senhor da Piedade e a levar ex votos ao padroeiro sempre que sentem o auxílio.

Jorge Matias, reformado e voluntário, que cede os seus fins de semana à Igreja para render os funcionários que ali trabalham durante a semana – «a Igreja tem que estar sempre aberta, recebemos muitas visitas» –, é testemunha dessa convicção popular tão enraizada. «Os ex votos mais normais são de cera», diz, contando que quase todos os fins de semana recebe pessoas que querem ali deixar o seu agradecimento. «Ainda há duas semanas estiveram aqui duas senhoras espanholas que vieram de Málaga, uma tinha estado doente com cancro», diz. «Na semana passada foi um casal português, que veio cá oferecer a fotografia deles e do filho».

Mas nem só da gratidão dos elvenses se fez a história do santuário, principalmente no que toca à conservação e divulgação dos ex votos.

Destaca-se um nome dentro do esforço popular: o de Eurico Gama (1913-1977), autodidata, bibliotecário e membro da Academia Portuguesa de História que, na década de 50, começou a organizar pela primeira vez de forma mais sistemática a coleção de ex votos, trabalho que foi sendo desenvolvido nos anos seguintes.

E na hora de zelar não só pelo padroeiro como dos ex votos há ainda o inegável trabalho da confraria do Senhor Jesus da Piedade – fundada logo em janeiro de 1739, pouco após a fundação da capela primitiva – hoje presidida pelo juiz da Confraria José Aldrabinha, que na hora de apresentar o legado de que é guardião lembra a força e a comoção de tantos milhares de testemunhos que expressam «preces, tristezas e alegrias».

Os esforços não são, contudo, suficientes para manter esta vasta coleção nas melhor condições. O estado de degradação nas telas de alumínio, por exemplo, é notória. E a limpeza das peças, um trabalho que se requer minucioso, é muitas vezes feita de modo aleatório. É ainda necessário fazer o levantamento de um espólio que continua a crescer e cuja dimensão impede que todos os ex votos estejam expostos ao público.

Um trabalho que, quanto mais cedo ficar concluído, melhor para a saúde e longevidade do espólio. A Direção Regional de Cultura do Alentejo está a elaborar uma candidatura aos fundos comunitários, no âmbito do Programa 20 20, para conseguir os meios necessários para levar o trabalho a bom porto.

Enquanto o processo não levanta voo, o Santuário do Senhor da Piedade continua a ser um bastião de fé dos elvenses, que, ali à porta, têm no aprazível Parque da Piedade um ponto de encontro. E é neste espaço que, todos os anos, a 20 de setembro, decorre a Feira de São Mateus, cujo ponto alto acontece com a chamada Procissão da Mulinha. Todos os anos, nessa data, a procissão sai à rua, e os elvenses saem com ela.