“Legalizar a canábis não pode ser para facilitar o acesso, mas para o tornar mais seguro”

 A Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga faz 20 anos. João Goulão faz o balanço e aponta os desafios. O mais urgente, avisa, é reforçar os meios de resposta.

O plano estava traçado para ser cirurgião vascular, mas a experiência como médico de clínica geral no Algarve trocou-lhe as voltas. Vieram os anos 80 e a dependência de heroína passou a ser uma constante nas consultas. A Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, de que viria a tornar-se um dos principais rostos, celebra 20 anos. Mudou o paradigma do consumidor criminoso para o doente. Hoje à frente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) João Goulão recupera a história que levou à descriminalização do consumo em 2001, os resultados e fala do momento atual, da falta de meios no terreno à canábis medicinal, mas também sobre o debate para legalizar o uso recreativo. 

Um eurobarómetro de 1997 concluiu que a droga era a principal preocupação dos portugueses. Disse numa entrevista ao El País que havia um caso em cada família. Olhando para trás, parece-lhe que houve um momento em que o problema foi ignorado pelo Estado?

Penso que tivemos a felicidade de ter, em momentos chave, políticos que se comprometeram com esta questão. É evidente que, nessa altura, ser a principal preocupação colocou a droga e a toxicodependência num patamar elevado das prioridades, mas a preocupação começa mais cedo. Almeida Santos criou as primeiras respostas de saúde e prevenção ainda nos anos 70. Paradigmaticamente estavam na alçada do ministro da Justiça. Não foi uma questão de se ter ignorado, o problema é que em Portugal os problemas da droga explodiram com a revolução. Antes havia algumas pequenas bolsas de utilizadores, mas não era um problema de massas. 

Lembra-se do seu primeiro contacto com a droga?

Tinha 20 anos no 25 de Abril. Fiz o final do liceu em Portalegre e não me lembro que houvesse, nem sequer haxixe, erva, não foi um tema na minha juventude. É depois do 25 de Abril e do processo de descolonização que começa a aparecer abundância de erva por todo o lado. Podemos comparar um bocado a situação em Portugal nessa altura com os americanos no Vietname. Cá a utilização de drogas era severamente reprimida, mas nas colónias era tolerada, era a maneira de os manter mais ou menos alienados relativamente a uma guerra com a qual a maioria não concordava. De repente voltam quase um milhão de pessoas para a metrópole, entre soldados, colonos, famílias. Voltam para Portugal num período em que o país estava a atravessar alterações sociais e havia uma grande avidez para a experimentação. 

Também chegou ao seu círculo de amigos?

Tinha vindo para Lisboa estudar Medicina e começou a aparecer. Lembro-me de circular um charro. Não estou a dizer que nunca experimentei, claro que experimentei, mas nunca fui um grande entusiasta nem tive um uso continuado. Nunca gastei um tostão a comprar. O que acontece é que daí a pouco tempo organizações criminosas tornaram disponíveis todas as outras drogas no mercado português. Em poucos anos passou a haver de tudo: heroína, cocaína, LSD, tudo o que se quisesse.

De onde vieram esses traficantes?

Provavelmente eram organizações que introduziam as substâncias noutros países europeus e encontraram aqui um mercado emergente. E depois há uns fenómenos paralelos. Fala-se muito no Casal Ventoso, o maior supermercado. Era um bairro de gente trabalhadora em grande parte ligada à atividade marítima, ao Porto de Lisboa. Com o processo de descolonização, a nossa marinha mercante foi ao fundo, houve ali um enorme desemprego.

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