‘Nietzsche vivia naquilo a que chamava a beira do precipício’

Terminou os seus dias num hospício, mas amava a lógica e a razão. Em ‘Eu Sou Dinamite’ Sue Prideaux reconstitui o percurso do filósofo que tentou libertar o homem, em particular da moral e da religião. Mesmo que para isso tivesse de demolir, pedra por pedra, tudo o que a sociedade do seu tempo tinha…

Filho de um pastor luterano que morreu aos 35 anos daquilo a que os médicos chamaram ‘amolecimento cerebral’, Friedrich Nietzsche parecia ter um futuro brilhante pela frente quando, em 1869, se tornou o mais jovem professor alguma vez nomeado para a universidade de Basileia, na Suíça. Mais ou menos por essa altura, travou conhecimento com o mundialmente célebre Richard Wagner e a amizade foi imediata. Nietzsche visitava o famoso compositor na sua casa faustosa (onde, além do Rei Luís da Baviera, era o único hóspede a ter um quarto para si em permanência), davam passeios na natureza e tinham longas conversas sobre música e filosofia. Embora fosse muito mais velho, Wagner respeitava o jovem professor de filologia e elogiou entusiasticamente os seus escritos.
No seu trigésimo aniversário, Nietzsche publicou uma das suas ‘Considerações Intempestivas’, em que emergia já um dos temas sobre os quais fundou o seu pensamento: o declínio da religião. Alguns anos mais tarde, n’A Gaia Ciência (1882), declararia enfaticamente: «Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matámos».
Este percurso existencial e intelectual, que acabaria por desaguar em 1888 numa doença mental irreversível (desde então viveu num hospício, e depois ficou aos cuidados da mãe e da irmã), é magistralmente reconstituído por Sue Prideaux em Eu Sou Dinamite – A Vida de Freidrich NIetzsche (ed. Temas & Debates/ Círculo de Leitores). A autora britânica (licenciada em história da arte e biógrafa também de Edvard Much), respondeu a algumas perguntas colocadas pelo SOL sobre este génio ainda hoje tantas vezes mal compreendido.

Nietzsche era filho de um pastor luterano, que ainda por cima morreu novo, quando ele tinha apenas quatro anos. Como evoluiu a sua relação com a religião?

Nietzsche era fervorosamente religioso em novo. E, quando lemos as suas cartas e diários, percebemos que esse sentimento era genuíno. Tinha a intenção de seguir as pisadas do pai na Igreja e sabia que isso faria a sua mãe e irmã muito felizes. Mas claro que o mundo das ideias mudou radicalmente em 1859, quando Nietzsche tinha 15 anos e foi publicada a Teoria da Evolução por Seleção Natural, de Darwin. O livro abriu porta à dúvida religiosa ao desafiar toda a grande mitologia universal que tinha moldado as crenças, a história, a moralidade e a cultura da Europa ao longo de mais de mil anos. Para compreender as fundações do pensamento de Nietzsche, quero que imagine como se sentiria se tudo aquilo que você, e as gerações antes de si, tinham sido ensinados a acreditar – tudo o que enquadrava e dava significado à vida – parecesse ter sido dinamitado. Ele e toda a sua geração tiveram de refletir sobre os novos problemas levantados pelo pensamento darwiniano. Se as coisas da Bíblia, como Deus ter criado o mundo em sete dias, tinham sido refutadas, então era preciso admitir a ideia de que Deus não existia. E se Deus morreu, como vivemos? Onde encontramos significado para a vida? Se não há um Céu para onde ir, qual é o nosso objetivo? Como funciona a moral sem algum tipo de sanção divina? Foi nisto que Nietzsche passou a vida a pensar. Por coincidência, penso que é nisso que andamos todos a pensar nos dias de hoje. E é isso que o torna tão relevante para nós.

Ele não tinha remorsos por negar a religião do pai?

Se ele se sentia culpado? Penso que não. Ele amou incondicionalmente o pai até ao fim. Na fase madura da sua filosofia, Nietzsche não condena os cristãos. Reconhece que a fé não pode assentar na razão; mas respeita a fé religiosa se for sincera e assumida de todo o coração. O que ele criticava era aquilo a que ele chamava o ‘três-quartos cristão’, a pessoa que diz que acredita sem se dar ao trabalho de questionar ou de levar a fé até às últimas consequências.
Nietzsche amava a razão e a lógica tanto quanto amava o pai. Ter-se-ia sentido culpado, sim, se permitisse que o sentimento para com o pai interferisse com a sua busca intelectual pela verdade. Não penso que se sentisse dividido entre o pai e a perda de fé. Uma pessoa racional pode ser fiel a duas ideias em simultâneo.

Ele nunca se casou e escreveu uma carta a um amigo em que se referia ao casamento como uma cedência à mediocridade. Tinha uma fraca opinião das mulheres ou apenas da vida doméstica do casal?
Na realidade, tinha as mulheres em melhor conta do que a maioria dos seus contemporâneos. Durante o período em que viveu, as mulheres não recebiam a mesma educação que os homens e não tinham direito a votar. Embora a sua irmã fosse dois anos mais nova, ele tratava-a como sua igual em termos intelectuais. Quando se tornou professor universitário em Basileia, votou para que estudantes do sexo feminino fossem admitidas (mas perdeu). Entre os seus amigos mais próximos estiveram pelo menos seis das primeiras feministas. Uma era Meta von Salis, a primeira mulher suíça a obter um doutoramento. Outra esteve presa pelas suas atividades políticas feministas. Toda a vida ele encorajou as mulheres a estudar e a pensar de forma independente.

E quanto ao casamento?

Ele só se apaixonava por mulheres inteligentes: as suas duas grandes paixões foram Cosima Wagner e Lou Salomé, ambas formidavelmente belas e inteligentes. Mais tarde, Lou Salomé também haveria de fascinar também Sigmund Freud. Mas Nietzsche tinha reservas em relação ao casamento. Ele interrogava-se quanto o casamento deve limitar o desenvolvimento individual e conduzir à cedência intelectual. Achava que, idealmente, um casamento não deveria durar mais de três anos, mas também dizia que se devia escolher para mulher alguém com quem se pudesse ter conversas interessantes durante a velhice. Não me parece um mau conselho.

Numa certa fase da sua vida Nietzsche abandona a filologia para se dedicar exclusivamente à filosofia, por achar que os filólogos desperdiçavam a vida com minudências linguísticas. Foi a relação com Cosima e Richard Wagner que lhe abriu os olhos? Essa amizade foi uma espécie de despertar?

Nietzsche tinha 24 anos quando conheceu Wagner, que já tinha 52. Wagner era mundialmente famoso e Nietzsche era apenas o filho de um pastor pobre mas que venerava a música de Wagner. E, de repente, Wagner puxou-o para o seu mundo inacreditavelmente glamoroso. Nietzsche apaixonou-se pela mulher de Wagner, a bela Cosima, que era filha do célebre Franz Liszt. O Rei Luís da Baviera entrava e saía deste círculo. Isto para Nietzsche era estonteante. A amizade foi certamente uma espécie de despertar para um novo mundo. Não apenas um novo mundo de dinheiro, requinte e glamour mas também de ideias. No entanto seria incorreto dizer que Wagner foi o responsável pela mudança de interesse da filologia para a filosofia. Essa mudança já tinha ocorrido. Mas durante os anos da sua amizade próxima, entre 1868 e 1876, cada um desenvolveu as ideias do outro através de conversas sobre música, cultura, história e filosofia. Durante este período, Wagner acabou de escrever o ciclo do Anel e Nietzsche escreveu o seu primeiro livro de filosofia, A Origem da Tragédia. A amizade entre Nietzsche e Wagner foi profundamente fecunda. Nunca é demais assinalar a sua importância para o desenvolvimento da cultura no século XX. Como todas as boas amizades, tornava cada um dos amigos melhor do que era sozinho.

Nietzsche costumava dizer que tinha sobrevivido durante a juventude graças à música de Wagner. O seu amor à música durou toda a vida, mesmo depois das críticas que lançou ao compositor no livro Nietzsche Contra Wagner?

Nietzsche adorou música toda a vida. «Sem música», dizia ele, «a vida seria um erro». O seu amor pela música sobreviveu a essas críticas a Wagner enquanto pessoa. E mesmo muito depois de ter censurado o nacionalismo furioso e o antissemitismo de Wagner, continuou a extasiar-se com a música do compositor.

Nos seus escritos, Nietzsche parece-nos sempre muito autoconfiante. Essa confiança era inabalável e autêntica ou, pelo contrário, disfarçava certas hesitações e inseguranças?

Ele parece de facto seguro de si. Mas também se contradiz com frequência. Essa é das características que o tornam tão fascinante – e tão irritante! Vou tentar dar uma resposta usando as palavras dele. Ele diz um par de vezes que toda a filosofia é autobiográfica. E se é esse o caso, toda a filosofia evolui à medida que o filósofo cresce e vê as coisas de outra maneira. Nietzsche reconhece que o seu ponto de vista vai mudando à medida que conhece mais do mundo. Ele mostra-o nalguns dos seus aforismos:
‘A serpente que não consegue livrar-se da sua pele morre’
‘Não há verdades, apenas perspetivas’
‘Retribui mal a um mestre aquele que permanece sempre como discípulo’
‘Desconfio e evito os sistematizadores. A adoção de um sistema é uma falta de integridade’.
Portanto ele está a dizer-nos claramente que a sua filosofia muda com a sua experiência e também que não devemos levar as suas respostas à letra. É nosso dever explorar as nossas próprias ideias para encontrarmos a nossa própria verdade. Foi este aspeto da sua filosofia, aliás, que me levou a querer escrever a sua biografia. O seu reconhecimento de que a sua filosofia é autobiográfica pareceu-me um repto para escrever uma biografia que cartografasse a sua vida a par do desenvolvimento das suas ideias.

O título do seu livro é uma citação do próprio em que ele diz ‘Sou Dinamite’. Nesta biografia quis mostrar que, apesar dessa bazófia, ele tinha fragilidades?

É verdade que ele tinha fragilidades, mas não foi isso que esteve na origem do título. Durante a sua vida Nietzsche foi um escritor sem grande sucesso. Já se podia dar por feliz se um livro seu vendesse 300 exemplares. Mais para o final da vida, tinha de pagar para ver os seus livros publicados. Dá para acreditar que ninguém quisesse publicar um livro tão importante como Assim Falava Zaratustra? Isto hoje parece-nos inconcebível. Da mesma forma, ninguém se dava ao trabalho de fazer recensões aos seus livros. Ele sentia-se completamente ignorado. Ainda assim, Para Além do Bem e do Mal, o seu primeiro livro a questionar o Cristianismo a fundo, recebeu uma boa crítica. O título era ‘O Livro Perigoso de Nietzsche’ e o autor comparava o pensamento de Nietzsche à dinamite, que tinha acabado de ser inventada. «Os explosivos intelectuais, tal como os de género físico, podem servir fins muito úteis; não é necessário que sejam utilizados para fins criminosos», escreveu o crítico em palavras que ecoaram através dos tempos, enquanto os escritos de Nietzsche eram interpretados, e mal, como proto-humanistas e proto-nazis.

Nietzsche gostava de se retirar para as montanhas e os lagos (como aliás o seu personagem Zaratustra) para filosofar. O seu amor pela natureza era proporcional à sua desconfiança em relação aos homens?

Ele não desconfiava das pessoas em si. Era da tendência para sucumbir a fantasias e para se autoiludir que ele desconfiava. Mas sim, encontrava grande conforto e inspiração na natureza. Num dos seus últimos livros até escreveu: «Nunca confies num pensamento que te ocorre quando estás dentro de casa».

Outra das suas máximas mais citadas é: «Para dar à luz uma estrela cintilante há que ter o caos dentro de si». Podemos ver nesta frase um elogio da loucura?
Onde acaba o pensamento original e começa a loucura? Para muitos dos grandes artistas criativos a fronteira entre os dois é fina como o gume de uma lâmina. Nietzsche vivia naquilo a que chamava a beira do precipício. E escreveu: «Aquele que luta contra os monstros deve ter cuidado para não se tornar ele próprio um monstro. E se olhares longamente para o abismo, o abismo olha de volta para ti». Estas palavras têm sido interpretadas de muitas maneiras e uma delas é certamente que ele tinha consciência do perigo de abrir as portas da perceção que davam acesso ao céu e ao inferno.

Conta-se que Nietzsche terá colapsado ao ver um cocheiro bater no seu cavalo, numa praça de Turim. Escreveu no seu livro que não é claro o que aconteceu nessa manhã de 3 de janeiro de 1889. A abordagem da psicanálise ainda não conseguiu dar pistas para resolver este enigma?

Pode ser que a história do cavalo sovado seja exatamente o que aconteceu, mas não podemos ter a certeza absoluta. Este momento da sua vida levanta várias questões muito ‘nietzscheanas’ sobre a natureza da verdade. Esta história só viu a luz do dia cerca de 30 anos após a sua morte, numa entrevista a Ernesto Fino [filho do senhorio de Nietzsche], que na altura tinha cerca de 14 anos. Pessoalmente, penso que provavelmente é verdade e parece-me psicologicamente convincente, mas não há provas a confirmarem-no, e quis dar conta disso no texto.

Seria abusivo imaginar que a situação terá recordado a Nietzsche o que viu no campo de batalha de Wörth 20 anos antes, onde jaziam os cadáveres de cerca de 10 mil alemães e oito mil franceses?

É uma hipótese muito interessante, e uma relação em que eu nunca tinha pensado. Pode bem ser verdade.

As cartas e notas que ele escreveu mesmo antes desse episódio, no Natal de 1888, e que assinou como ‘Nietzsche Caesar’, ‘Fénix’, ‘Dionísio’ e ‘O Crucificado’, são apenas delírios sem sentido ou, pelo contrário, revelam aspetos da sua personalidade?

As últimas cartas e notas não são, definitivamente, apenas os delírios sem sentido de um louco. Vejo essas notas escrevinhadas à pressa como os estilhaços atirados pela sua mente em processo de desintegração. Referem figuras que o preocuparam toda a vida: Jesus Cristo o Crucificado, [o deus] Dionísio, Cosima Wagner, a quem ele se atreveu a confessar a sua paixão, e o seu respeitado colega em Basileia, o professor Jacob Burckhardt. O seu ódio ao antissemitismo manifesta-se quando escreve: «Vou fazer com que todos os antissemitas sejam abatidos». E o seu ódio ao grande estado nacionalista aparece quando diz que vai mandar abater o jovem kaiser. Estes fragmentos são como pequenos estilhaços afiados, provocados pela quebra do vidro da razão. São os despojos de longas linhas de raciocínio, projetadas por um cérebro que está a ser dinamitado pela loucura.