Ninguém almoça coerência

O ‘subitamente’ não é critério, mas ajuda a explicar o fracasso da intentona. A posição de António Costa, com a respetiva ameaça de se demitir, apareceu vinda do nada

Subitamente, o primeiro-ministro António Costa anunciou ao país, pelas televisões, de que havia uma crise política – a crise dos professores, a propósito da consideração do tempo de serviço.

O ‘subitamente’ não é critério, mas ajuda a explicar o fracasso da intentona. A posição de António Costa, com a respetiva ameaça de se demitir, apareceu vinda do nada. O tema era conhecido há anos e não havia novidade. Toda a gente sabia de cor e salteado os vários argumentos: a justiça das pretensões dos professores, a equiparação às outras carreiras da Função Pública, o contraponto com o setor privado, os problemas orçamentais, os encargos permanentes para o Estado.

Quando a questão se colocou na Assembleia da República, António Costa terá visto ali uma oportunidade de fazer um ‘número’. Todos os seus aliados políticos (e são muitos) vieram a terreiro dar uma ajuda, ninguém faltou à chamada. Os jornalistas escreveram, os editorialistas rasgaram as vestes, os comentadores nas TVs juraram pela maioria absoluta de Costa nas próximas eleições legislativas.

É verdade que há crises políticas que acontecem subitamente. Quando o Governo de Passos Coelho insanamente resolveu, ainda que propulsionado pela troika, que era uma bela ideia mexer na TSU, a crise política foi súbita, autêntica e verdadeira. Aquilo era uma coisa que o povo não queria e mostrou-o. 

Ou a crise política que todos antecipámos quando os fogos de 2017 mataram mais de 100 portugueses e António Costa, com a sensibilidade de um bruto, não esteve à altura das circunstâncias. Como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa já admitiu, passou-lhe pela cabeça tomar medidas drásticas. A revolta sentida pelos portugueses era verdadeira. 

Desta vez, o argumento utilizado foi o da falta de coerência, mais concretamente, o PSD e o CDS não teriam sido «coerentes».

Falemos então de coerência. Nós temos uma solução de Governo que é a epítome da falta de coerência. Aliás, incoerência deveria ter no dicionário a seguinte entrada: «geringonça, Governo do PS apoiado por PCP e BE». 

Incoerência, na boca de PS, Bloco e PCP, é vitupério. Melhor fora que nem pronunciassem a palavra. Como é que o PS aceita ser Governo suportado por dois partidos radicais de extrema-esquerda que defendem a saída do euro, que abominam a iniciativa privada, que nacionalizavam toda a economia se pudessem e que se recusam a condenar Maduro pelo massacre dos venezuelanos?

Eu digo como: não em nome da coerência, certamente, mas em nome do pragmatismo. O PS queria ser Governo, António Costa queria ser primeiro-ministro, enfiaram a coerência na mesma gaveta em que Mário Soares tinha enfiado o socialismo. 

Habituados a sobreviver, os portugueses não se abalam muito com assuntos de coerência em abstrato. Ficam chocados, e com razão, com políticos como Ricardo Robles, que vituperava o capitalismo e era ele próprio um grande capitalista do imobiliário. 

As sondagens mataram de pronto a crise política artificial, bastante mal calculada por António Costa. É que, daqui por diante, de cada vez que alguma coisa corra mal, o povo dirá entredentes: «Demita-se…».

sofiarocha@sol.pt