Retrocesso civilizacional

Na nossa sociedade, a classe média atingiu um tal grau de bem-estar que, sem saber já o que há de inventar, se compraz a imaginar coisas disparatadas

Julia Roberts é uma simpática atriz norte-americana de 51 anos, que chegou a ser a mais bem paga de Hollywood. Houve quem a considerasse a atriz mais bonita da sua época, o que era notoriamente um exagero. Julia Roberts não era propriamente bonita. Era diferente. Diferença que lhe era dada por uma boca muito grande em relação à largura do rosto.

Houve um tempo em que as bocas grandes estavam muito em voga – de certo modo, ainda estão – e Julia beneficiou disso. Tal como, entre nós, Manuela Moura Guedes e Conceição Lino.

Há três semanas, a atriz surpreendeu tudo e todos com um post na rede social Instagram onde se fotografava à frente do indicativo de uma casa de banho de ‘género neutro’ («gendre neutral restroom») – ou seja, para homens, mulheres, transgénero e deficientes – e fazia o seguinte comentário: «Gostava que no futuro fossem todas assim». 

Noutra localização geográfica, na mais vizinha Catalunha, uma autoridade provincial exigira semanas antes a colocação de fraldários (locais de mudança de fraldas dos bebés) nas casas de banho masculinas, além das femininas. 

Foram mais duas achegas no sentido da indiferenciação dos sexos. Uma mais suave, a duplicação dos fraldários; outra mais dura, as casas de banho mistas. Julia Roberts acha que homens e mulheres são tão iguais que, mesmo em locais íntimos como as casas de banho, não há razões para haver diferenciação.

Tenho repetidamente escrito que estamos numa época de decadência civilizacional, que se manifesta no retrocesso em muitos campos, exceção feita à tecnologia. 

A música, por exemplo, brutalizou-se. Perdeu a melodia. Mesmo quem gosta de música contemporânea não pode deixar de reconhecer que há um abismo entre uma sinfonia de Beethoven e uma canção atual – onde prevalece o pum-pum-pum do bombo, que marca o ritmo, como nos batuques das tribos primitivas.

E na pintura acontece o mesmo. Mesmo os que gostam de pintura contemporânea, como é o meu caso, não podem deixar de reconhecer que há uma diferença gigantesca entre um quadro de Rembrandt e quatro ou cinco borrões de tinta dispostos ao acaso numa tela. Não é, de resto, segredo para ninguém que Picasso e outros protagonistas da revolução artística do início do século passado procuraram na arte primitiva africana inspiração para as suas obras.

Neste apelo de Julia Roberts a favor da existência de casas de banho mistas também existe a vontade de retroceder no tempo. 

De facto, na época das invasões bárbaras, as hordas de pessoas, homens, mulheres e crianças, que vinham por aí abaixo aos milhares, não podiam ter grandes pruridos. Tinham de partilhar tudo. Comiam dos mesmos tachos, tinham relações com quem calhava, faziam as necessidades à vista umas dos outras. A privacidade e o pudor eram luxos de que não podiam gozar tendo em conta as circunstâncias.

Mas foi aí que entrou a chamada ‘civilização’. Com a civilização veio a monogamia, para se saber quem era filho de quem. E veio o pudor, dando resposta a uma parte reservada do ser humano, que quer guardar alguma coisa para si. E na preservação da intimidade surgiram as casas de banho diferenciadas por sexos, partindo do princípio de que homens e mulheres, sendo diferentes, se sentem constrangidos a partilhar um mesmo espaço íntimo.

Ora, tudo isso faz hoje parte da nossa civilização – e é esta que está hoje em causa. Há uma vertigem de regressar à barbárie. Ou, vendo por outro prisma, uma necessidade de destruir os pilares em que assenta o mundo ocidental. 

Num plano mais terra-a-terra, não deixa de ser irónico o apelo de Julia Roberts numa altura em que em Portugal, ainda não há muito tempo, a ASAE fechava cafés por não terem casas de banho para empregados! Pela província fora, houve famílias que tiveram de fechar o seu pequeno negócio porque a ASAE, implacavelmente, as proibiu de manterem as portas abertas sem que, além das casas de banho para homens e mulheres, houvesse umas para empregados. 

Vivemos uma época tumultuosa em que o bom senso parece uma raridade. De um lado desejam-se casas de banho mistas, de outro lado exigem-se casas de banho separadas para clientes e empregados, como se estes pertencessem a uma raça diferente. 

Na nossa sociedade, a classe média atingiu um tal grau de bem-estar que, sem saber já o que há de inventar, se compraz a imaginar coisas disparatadas. O politicamente correto é uma decorrência disso. As casas de banho comuns, a música desconexa, a arte bruta, as calças rotas, os penteados despenteados, são algumas das suas manifestações idiotas.