As Obsessões de Um Historiador Belga

No fundo, Pirenne limitava-se a ser fiel às suas obsessões. E isso permitia que o seu livro fosse ao mesmo tempo – e sem contradição – «magistral» e dececionante.

Da primeira vez que li As Cidades da Idade Média, no início de 2013, parti com uma expectativa muito alta. O seu autor, Henri Pirenne (1862-1935), foi um historiador belga que escreveu, além de uma monumental História da Bélgica em sete volumes, o original Maomé e Carlos Magno, em que defendeu que, sem as invasões árabes na Europa (particularmente na Península Ibérica em 711), o Velho Continente tal como o conhecemos hoje não existiria, uma vez que foram elas que ‘empurraram’ a civilização europeia e assim deslocaram o centro de gravidade do Mediterrâneo para os territórios mais a Norte (França, Alemanha). Essa mudança corresponde à transição do Mundo Antigo para a Idade Média. Devo no entanto dizer que a leitura de As Cidades da Idade (originalmente publicado na coleção Que Sais-je?) não me encheu as medidas. Uma prova disso é que o primeiro sublinhado só surge na página 49. Diz respeito a como os escandinavos se instalaram nas margens do rio Dniepre no século IX. «Estes conquistadores, que os vencidos designaram sob o nome de Russos, construíram recintos fortificados, chamados gorods em língua eslava, onde se instalaram àvolta dos seus príncipes e das imagens dos seus deuses. As mais antigas cidades russas devem a sua origem a estes campos entrincheirados».

Quais as minhas impressões acerca deste livro? Vou recorrer aos apontamentos que escrevi então: «Em geral as considerações são muito gerais e destituídas de pormenores. O que diferenciava uma cidade medieval italiana de uma cidade francesa ou flamenga? Como eram os edifícios? De que materiais eram feitos? Que atrações, que festas havia nas cidades? Como eram os interiores das casas? O que comiam os seus habitantes? Nada disso aparece respondido. […] Às catedrais são dedicadas umas meras sete linhas!», indignava-me então. Uns tempos depois, no entanto, deparava-me com um historiador que muito respeito a considerar o livro de Pirenne «magistral». Ter-me-ia escapado alguma coisa?

Fui buscá-lo de novo à estante e, abrindo-o um pouco ao acaso, encontrei este parágrafo interessante: «Mas o segredo da fortuna, tão rápida e tão prematura, dos mercadores venezianos encontra-se, incontestavelmente, no estreito parentesco que liga a sua organização comercial à de Bizâncio e, através de Bizâncio, à organização comercial da Antiguidade. Na realidade, Veneza só pertence ao Ocidente pela sua localização geográfica […]. Os primeiros colonos das lagoas, fugitivos […], para lá levaram a técnica e os utensílios económicos do mundo romano […], salvaguardaram e desenvolveram esse precioso depósito».

Nesse momento fez-se luz. Fosse qual fosse o tema tratado – Maomé e Carlos Magno ou as cidades da Idade Média – o que realmente preocupava Pirenne era essa transição da Antiguidade para a Idade Média e as relações entre o Oriente e o Ocidente. No fundo, Pirenne limitava-se a ser fiel às suas obsessões. E isso permitia que o seu livro fosse ao mesmo tempo – e sem contradição – «magistral» e dececionante.