Não pagamos!

Um emigrante português fez fortuna e veio investir na sua terra. Fez mais, multiplicou os seus meios e reproduziu a sua intervenção no mundo dos negócios em empresas por si criadas dedicadas a atividades diversas.

Cavalgando a onda do investimento em arte, procedeu à sistemática aquisição de obras que lhe permitiram constituir uma considerável coleção.

Mudou, então, de estatuto. Além de rico passou a ser tido como um expoente da cultura.

Foi o tempo de o desejo conseguido de consideração social o tornar o burguês notável.

Do ponto de vista dele, o que fazer com a coleção? Deixar passar o tempo e valorizá-la, certamente.

Um pequeno problema, o custo dos seguros. Outro, o custo do local de exposição.

Atento, um Governo espreitou a oportunidade.

E, assim, a consideração, o interesse e a ocasião geraram um acordo.

Os portugueses sentiram-se próximos da coleção, o Estado sonhou vir a ser seu dono, o detentor criou um enorme capital de influência.

A tal ponto que, uma guerra nascente pelo controle de bancos deu origem à celebração de um conúbio.

O detentor comprava ações, a governo coordenava as operações, os bancos emprestaram sem limites.

Uma história triste. Tudo acabou mal.

Os bancos destruídos pela crise, as ações sem valor, a dívida acumulada.

Tudo quanto se passou daqui para a frente, custa a entender.

Os sinais de alerta pelo incumprimento não cessaram de acontecer.

Percebeu-se que os bancos tentavam renegociar com completo insucesso e crescente debilidade.

E, todavia, ninguém conseguia perceber porque não executavam a dívida, tão negro parecia o futuro.

Mil milhões terá sido o número mágico para o despertar da modorra.

Do outro lado, o detentor, fazia acordos e celebrava a sua denúncia.

E isto porquê? Porque habilmente o detentor tinha criado uma associação na qual os bancos participavam alegremente. Eram os títulos desta associação que serviam de garantia, não a coleção.

E os bancos ficaram de um momento para o outro a ver navios.

Ninguém reparou.

Foi preciso realizar uma Comissão de Inquérito Parlamentar para que o País se desse conta do acontecido.

Ali, perante as caras de espanto, o detentor explicou as suas astúcias e não deixou grande margem à recuperação dos créditos.

O que resta desta história não é, para mim, um comportamento censurável, uma falta de respeito, uma completa cara de pau. O detentor levou todos à certa.

Revisitando Hergé, outro Oliveira da Figueira se desenhou como típica figura do português. Um o impagável vendedor, outro o inexecutável comprador.

O nosso fado a dois tons.

Mas o que me impressiona é toda esta estranhíssima catadupa de cumplicidades e de ausência de responsabilidade demonstrada.

Com tanta gente ilustre, tantos juristas de eleição, tão distintos administradores da Caixa e dos outros, ninguém foi capaz de surpreender o golpe?

Os bancos foram os últimos a saber?

Peço desculpa. Juro que não é populismo. É a vida.

Sonho com o improvável.

E se a dívida for paga à CGD um modestíssimo reformado residente em nenhures, desconhecedor da arte contemporânea, sobrevivente da miséria envergonhada, poderá ser poupado a pagar mais de dois euros por levantamento com a caderneta?